30 agosto 2007

Na casa Avoenga

José Nêumanne

A nuca cansada apoiada
na palma aberta da mão,
os olhos míopes
do velho Chico Ferreira
escutavam o choro do sertão
no céu sem estrelas
da mais escura vastidão.

um sapo
um grilo
um rês
uma rã

Assim era o serão
na Fazenda Rio do Peixe,
de onde fui vindo.

Todo som que me vier
do bojo da rabeca de Bié,
como chuva na telha
e sabor de leite coalhado
com rapadura rapada
– eta emoção!

Fonte: Nêumanne, J. 2002. Solos do silêncio, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema originalmente publicado em 1985.

29 agosto 2007

At the harbour

Betty Thatcher

Out at daybreak to the sun
Seas are drifting glass
The tides were turning to the storm
Winds were moving fast
Women waiting at the harbour
Silent stand around
Weather storms another day
For men the sea had found

Fishermen were laying nets
The barrels spread the bait
The seagulls warning echoed round
Winds that wouldn’t wait
People gathered at the harbour
Waiting for the tide
Eyes half closed against the spray
And tears they cannot hide

Shadows falling at the harbour
Women stand around
Weather storms another way
For men the sea have drowned


Hulls were creaking crashing sails
Rains were slating down
The oilskins flapping, decks awash
Slanting turning round
Thunder roaring at the harbour
Women drawn in fear
Huddle up to wait the time
And pray the sky will clear

Howling winds and the raging waves
Cracked upon the boats
And torn from safety, torn from life
Men with little hope
Ghostly echoes at the harbour
Whispering of death
Women weeping holding hands
Of those they still have left

Shadows falling...

Fonte: capa do álbum Ashes are burning (1973), do Renaissance.

28 agosto 2007

Ainda uma vez – adeus!

Gonçalves Dias

1.
Enfim te vejo! – enfim posso,
Curvado a teus pés, dizer-te,
Que não cessei de querer-te,
Pesar de quanto sofri.
Muito penei! Cruas ânsias,
Dos teus olhos afastado,
Houveram-me acabrunhado
A não lembrar-me de ti!

2.
Dum mundo a outro impelido,
Derramei os meus lamentos
Nas surdas asas dos ventos,
Do mar na crespa cerviz!
Baldão, ludíbrio da sorte
Em terra estranha, entre gente,
Que alheios males não sente,
Nem se condói do infeliz!

3.
Louco, aflito, a saciar-me
D’agravar minha ferida,
Tomou-me tédio da vida,
Passos da morte senti;
Mas quase no passo extremo,
No último arcar da esperança,
Tu me vieste à lembrança:
Quis viver mais e vivi!

4.
Vivi; pois Deus me guardava
Para este lugar e hora!
Depois de tanto, senhora,
Ver-te e falar-te outra vez;
Rever-me em teu rosto amigo,
Pensar em quanto hei perdido,
E este pranto dolorido
Deixar correr a teus pés.

5.
Mas que tens? Não me conheces?
De mim afastas teu rosto?
Pois tanto pôde o desgosto
Transformar o rosto meu?
Sei a aflição quanto pode,
Sei quanto ela desfigura,
E eu não vivi na ventura...
Olha-me bem, que sou eu!

6.
Nenhuma voz me diriges!...
Julgas-te acaso ofendida?
Deste-me amor, e a vida
Que me darias – bem sei;
Mas lembrem-te aqueles feros
Corações, que se meteram
Entre nós; e se venceram,
Mal sabes quanto lutei!

7.
Oh! se lutei!... mas devera
Expor-te em pública praça,
Como um alvo à populaça,
Um alvo aos dictérios seus!
Devera, podia acaso
Tal sacrifício aceitar-te
Para no cabo pagar-te,
Meus dias unindo aos teus?

8.
Devera, sim; mas pensava,
Que de mim te esquecerias,
Que, sem mim, alegres dias
Te esperavam; e em favor
De minhas preces, contava
Que o bom Deus me aceitaria
O meu quinhão de alegria
Pelo teu quinhão de dor!

9.
Que me enganei, ora o vejo:
Nadam-te os olhos em pranto,
Arfa-te o peito, e no entanto
Nem me podes encarar;
Erro foi, mas não foi crime,
Não te esqueci, eu to juro:
Sacrifiquei meu futuro,
Vida e glória por te amar!

10.
Tudo, tudo; e na miséria
Dum martírio prolongado,
Lento, cruel, disfarçado,
Que eu nem a ti confiei;
“Ela é feliz (me dizia)
“Seu descanso é obra minha”.
Negou-me a sorte mesquinha...
Perdoa, que me enganei!

11.
Tantos encantos me tinham,
Tanta ilusão me afagava
De noite, quando acordava,
De dia em sonhos talvez!
Tudo isso agora onde pára?
Onde a ilusão dos meus sonhos?
Tantos projetos risonhos,
Tudo esse engano desfez!

12.
Enganei-me!... – Horrendo caos
Nessas palavras se encerra,
Quando do engano, quem erra.
Não pode voltar atrás!
Amarga irrisão! reflete:
Quando eu gozar-te pudera,
Mártir quis ser, cuidei que era...
E um louco fui, nada mais!

13.
Louco, julguei adornar-me
Com palmas de alta virtude!
Que tinha eu bronco e rude
Com o que se chama ideal?
O meu eras tu, não outro;
Estava em deixar minha vida
Correr por ti conduzida,
Pura, na ausência do mal.

14.
Pensar eu que o teu destino
Ligado ao meu, outro fora,
Pensar que te vejo agora,
Por culpa minha, infeliz;
Pensar que a tua ventura
Deus ab eterno a fizera,
No meu caminho a pusera...
E eu! Eu fui que a não quis!

15.
És doutro agora, e para sempre!
Eu a mísero desterro
Volto, chorando o meu erro,
Quase descrendo dos céus!
Dói-te de mim, pois me encontras
Em tanta miséria posto,
Que a expressão deste desgosto
Será um crime ante Deus!

16.
Dói-te de mim, que te imploro
Perdão, a teus pés curvado;
Perdão!... de não ter ousado
Viver contente e feliz!
Perdão da minha miséria,
Da dor que me rala o peito,
E se do mal que te hei feito,
Também do mal que me fiz!

17.
Adeus que eu parto, senhora;
Negou-me o fado inimigo
Passar a vida contigo,
Ter sepultura entre os meus;
Negou-me nesta hora extrema,
Por extrema despedida,
Ouvir-te a voz comovida
Soluçar um breve Adeus!

18.
Lerás porém algum dia
Meus versos, da alma arrancados,
De amargo pranto banhados,
Com sangue escritos; – e então
Confio que te comovas,
Que a minha dor te apiade
Que chores, não de saudade,
Nem de amor, – de compaixão,

Fonte: Dias, G. 2003. I-Juca-Pirama. Os Timbiras. Outros poemas. SP, Martin Claret.

27 agosto 2007

Arqueiros


Joshua Reynolds (1723-1792). Colonel Acland and Lord Sydney: The Archers. 1769.

Fonte da foto: Olga’s Gallery.

26 agosto 2007

Rubaiatas

Omar Iben Ibrahim El-Khaiami

1.
Ó Allah,
incerto, vacilante,
sem rumo,
inteiramente desorientado,
não consigo provar
a realidade do Teu ser.

Profundas meditações,
trabalhosas lucubrações
são simples devaneios,
pesquisas no vácuo
em busca da Tua existência,
que não consigo vislumbrar.

Em sã consciência,
não posso compreender
de que modo Tu existes,
embora muita gente
consagre e descreva
os mais fantasiosos predicados
que Te resolveram emprestar.

A conclusão de tudo isso
é que ninguém Te poderá conhecer
– com exceção de Ti mesmo.

2.
Somos joguetes
nas mãos do Destino.
Simples brinquedos,
à nossa custa
diverte-se o Universo.

Joguetes
que vivem redemoinhando
ao sabor dos ventos.

Não se trata de metáfora,
nem há exagero no que digo:
esta é a realidade.

No passado,
ingenuamente brincávamos
no tablado da vida.

Seremos hoje,
uns após outros,
carregados
no féretro do não-ser.

3.
Se me tivessem consultado
sobre minha vinda
até estas paragens,
eu teria dito: – Não!

A própria existência,
se dependesse da minha vontade
tê-la ou não a ter,
eu opinaria
pela negativa.

Lastimei-me!
Quando me queixei
por haver caído
neste cárcere asfixiante!

Lamentei haver nascido,
crescido
e vivido nele!
Lamentações e mais lamentações!

4.
Ó Allah,
se me consideras
escravo desobediente,
rebelado,
onde estão,
dize-me,
Tua benevolência
e Teu perdão?

Será duro e negro meu coração,
pérfida minh’alma:
mas onde se encontra
toda essa Tua pureza,
em que espaços fulgirão
as luzes da Tua bondade?

Se me acenas
com as delícias do Paraíso
como prêmio
de uma indigna submissão,
será isso um abarganha supeita
que mercadores ávidos
gostariam de fazer.

Que diferença entre Ti e eles
haveria então?

Assim, desconcertado e confuso,
como poderei exaltar
a Tua compreensão,
a Tua magnificência,
a Tua divindade?

Fonte: Khayyám, O. 2005. Rubáiyát. SP, Martin Claret. A obra completa contém 182 rubaiatas, as quatro primeiras das quais são reproduzidas aqui. Obra e autor são comumente grafados como “Rubáiyát” e “Omar Khayyám”, respectivamente.

21 agosto 2007

Poética

Manuel Bandeira

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem-comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que
quer que seja fora de si mesmo.

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare

– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1930.

20 agosto 2007

Por trás da palavra

Mário Chamie

Por trás
de toda palavra
há uma trama
cavada.
Só não se cava
nem se sagra
a palavra
enclausurada.

A clausura
da palavra
é a palavra
lacrada;
é a usura
da palavra
que não abre
suas veias
se se envenena
de nada.

Só se salva
a palavra
contaminada
por outra palavra
sangrada:
– pois a palavra
infectada
pelo que outra
desata
é a palavra
que em sua casca
se rasga
contra o nada
da palavra
enclausurada.

Por trás
de toda palavra
que não se perde
lacrada
há a trama envenenada
de toda palavra
tramada.

Fonte: Chamie, M. 1998. Caravana contrária. SP, Geração Editorial.

19 agosto 2007

Deriva continental e tectônica de placas

Peter Ward

A idéia de que os continentes não estão fixados na superfície da Terra, mas podem de algum modo se mover, não é nova. A congruência notável da forma dos litorais da África ocidental e do leste da América do Sul despertou a atenção dos geógrafos tão logo se tornaram disponíveis mapas precisos do Novo Mundo. Mas inúmeras idéias malucas pulularam através da história, e essa pareceu ainda mais excêntrica que a maioria. O conceito de deriva continental foi seriamente considerado pela primeira vez no final do século 19, quando o então famoso geólogo austríaco Eduard Suess sugeriu que a África, Madagascar e Índia estiveram outrora unidos como uma única massa de terra, separando-se somente depois. Suess baseou sua proposição herética na grande semelhança de tipos de rochas encontradas em todas as três áreas. Ele batizou esse antigo continente de Gonduana, derivando o nome de um lugar na Índia habitado por uma tribo denominada Gonds.
[...]

As várias linhas de discussão em favor do conceito de um supercontinente antigo e sulino foram reunidas em um livro notável, publicado por um meteorologista alemão em 1912. Alfred Weneger estava convencido de que a grande semelhança entre os litorais da África ocidental e do leste da América da Sul transcendia qualquer possibilidade de coincidência. Ele reuniu o máximo de informações paleontológicas e geológicas possível em apoio à sua causa. Mas em muitos aspectos, a prova principal foi a presença de fósseis de mesosauro em camadas de idade semelhante dos diferentes membros de Gonduana agora separados.

Weneger tinha a confiança cega de um fanático religioso. Entretanto, faltavam-lhe os conhecimentos geológicos detalhados para realmente apoiar sua hipótese. A publicação do livro de Weneger foi recebida com aplausos discretos e uma sensação crescente de admiração pelos cientistas do hemisfério sul e com apupos ensurdecedores pelos muitos mais numerosos (e ignorantes) geólogos do hemisfério norte. “Como é possível continentes se moverem sobre o fundo sólido dos oceanos?”, pradaram os críticos. Os geofísicos, aqueles geólogos que lidavam com o interior e a física da Terra, foram particularmente contundentes em suas críticas, esquecendo que fizeram parte do mesmo grupo de cientistas que garantiu ao mundo que Darwin estava errado sobre a antigüidade da Terra – que, de acordo com os cálculos deles, não tinha mais de 5 milhões de anos. (Eles erraram por um fator de mil.) Quando Weneger morreu em um acidente de balão sobre a capota de gelo da Groenlândia, em 1930, a comunidade geológica emitiu um mal dissimulado suspiro de alívio. Mas não por muito tempo.

No início do século 20, um jovem geólogo sul-africano chamado A. L. du Toit, começou a cruzar a África do Sul, gastando vinte anos examinando a estrutura das rochas, mapeando vastas extensões de território, arquivando assim vastas quantidades de informação em sua memória enciclopédica. Du Toit, que logo percebeu que a escandolosa hipótese de Weneger explicava muitos dos aspectos geológicos do sul da África, publicou em 1921 seu primeiro estudo sobre a possibilidade de “deslocamento dos continentes”. [...]

Em 1937, du Toit publicou um livro monumental sobre Gonduana chamado Our wandering continents: An hypothesis of continental drifting. Seus detratores o espinafraram. Os mesosauros poderiam facilmente nadar através dos oceanos, clamaram; a semelhança nos estratos e o encaixe dos litorais dos diferentes membros de Gonduana não passavam de coincidências, zombaram. Por 25 anos, a idéia esteve morta nas mentes dos geólogos, exceto uns poucos obstinados; o resto do mundo científico parece ter ignorado o conselho oportuno na capa do grande livro de du Toit: “A África forma a Chave”.

Fonte: Ward, P. 1997. O fim da evolução. RJ, Campus.

18 agosto 2007

Soletrado das folhas da Sibila

Gerard Manley Hopkins

Grave, imaterial, igual, harmonizante, abarcante, voluminoso… assombroso,
O anoitecer quer ser do tempo a vasta noite, útero-de-tudo, morada-de-tudo, tumba-de-tudo.
Seu doce crescente de luz amarela, enrolado para o poente, sua erma oca luz grisalha, na altura pendente,
Desmaiam; suas estrelas primeiras, estrelas princesas, estrelas principais, debruçam-se sobre nós,
Em fogo mapeando o céu. Pois a terra seu ser desatou, seus matizes se apagam, ex-
traviando-se, esfriando, entrando uns pelos outros em tropel; ser em ser imersos, esmagados, – de todo
Deslembrados, desmembrados agora. Coração, é certo o que me sussurras:
Nossa tarde baixa sobre nós; nossa noite engolfa-nos, engolfa-nos, e dá cabo de nós.
Só os galhos com folhas em boca-de-dragão adamascam a luz baça, de aço; negros,
Nigérrimos contra ela. Nossa história, Ó nosso oráculo! Que a vida minguante, ah! que a vida enrole
Suas meadas, outrora variegadas, mescladas, raiadas – junte tudo em dois carretéis; separe, aparte, encurrale
Seu tudo agora só em dois bandos, dois rebanhos: preto, branco; certo, errado. Calcule apenas, apenas pense, imagine
Só estes dois; cuidado com um mundo onde estes dois apenas contem, um do outro separados; uma tortura
Onde, em si-mesmos espremidos, a si mesmos amarrados, desembainhados, sem abrigo, pensamentos contra pensamentos trituram-se em gemidos.

Fonte: Hopkins, G. M. 1989. Poemas. SP, Companhia das Letras. Poema originalmente publicado em 1918.

17 agosto 2007

Passagem de agosto

Geraldo Falcão

A procissão de ventos desde a aurora
avança por aldeias, por desertos,
cantando vem chegando, vai embora,
ziguezagueia em seu vagar incerto.

Dedos inquietos, saltam bailarinos
nas hastes escamadas das palmeiras
soam flautas, violões e violinos
seguindo a voz de louca feiticeira.

Os ventos vão erguendo entre as estrelas
solene catedral a Sebastian:
torres de solidão, vozes e velas,
chamas de linho ardendo na manhã.

Harpas marulham em vastidões escuras
por onde o vento passa indiferente,
desatando canções que são loucura
na garganta perdida dos dementes.

Ventos de luz e flamas que confluem,
silfo de cinza e sal eu me desfaço
em nuvens que do chão ao céu refluem
no azul que cai ao chão feito em pedaços.

Fonte: Falcão, G. 1997. O viajante anônimo. SP, Ateliê Editorial.

16 agosto 2007

Mulher com flor


Paul Gauguin (1848-1903). Vahine no te tiare. 1891.

Fonte da foto: Olga’s Gallery.

Agosto

Douglas Messerli

Querida carruagem
no verão
enquanto estanca
e lentamente
se desmancha
em conclusão,
o galope
é um instantâneo
a semelhança.
O futuro empresta
problemas
do galho
e a cada bifurcação
hesita frente à contenda.

Como agüentar
a luz intensa,
branca do verão
presente, em foco
sobre a grama pensativa,
seca a ponto de estalo,
quando a tarde
se fia no que
voa? Nuvens
fogem entre as
asas dos pássaros, e
a vibração trama algo
que os dedos querem
apalpar: ausente,
à espera, e não
no tom exato.

Fonte: Messerli, D. 1999. Primeiras palavras. SP, Ateliê Editorial.

15 agosto 2007

Os miseráveis

Victor Hugo

1.
Em um dos primeiros dias de outubro, em 1815, antes do pôr-do-sol, um homem viajava a pé. Tinha aparência assustadora. Seria difícil encontrar alguém com aspecto mais miserável. Era forte, de estatura mediana. Parecia ter de quarenta e cinco a cinqüenta anos. Na cabeça, um boné com aba de couro. A camisa, de tecido grosseiro, mal-fechada deixava ver o peito cabeludo. Calças esfarrapadas. Sapatos sem meias. Nas costas, um volumoso saco de viagem de soldado. Trazia na mão um cajado de madeira, cheio de nós. Cabeça raspada e barba crescida. O suor e o pó da estrada tornavam sua aparência ainda pior.
[...]

3.
Durante a madrugada, Jean Valjean acordou.

O ex-condenado pertencia a uma família camponesa. Quando criança, não aprendeu a ler. Ao crescer, tornou-se podador de árvores. Órfão de pai e mãe, foi criado por uma irmã mais velha, casada e com sete filhos. Quando tinha vinte e cinco anos, a irmã enviuvou. O filho mais velho tinha oito anos, o mais novo um. Jean Valjean tornou-se o arrimo da família. Passou a sustentar a irmã e os sobrinhos com trabalhos grosseiros e mal remunerados. Nunca namorou, nem nunca se soube que estivesse apaixonado. Vivia para a família. Falava pouco, tinha o semblante pensativo. Quando comia, muitas vezes a irmã tirava o melhor pedaço de seu prato para dar a uma das crianças, e ele sempre permitia. Mas seu trabalho e o da irmã eram insuficientes para sustentar uma família tão grande. A miséria aumentou. Certo ano, em um inverno rigoroso, Jean Valjean não encontrou trabalho. A família ficou sem pão. Sem pão. Exatamente como está escrito. Sete crianças.
[...]

Fonte: Hugo, V. 2001 [1862]. Os miseráveis. SP, Editora FTD.

14 agosto 2007

Antiguidades

Cora Coralina

Quando eu era menina
bem pequena,
em nossa casa,
certos dias da semana
se fazia um bolo,
assado na panela
com um testo de borralho em cima.

Era um bolo econômico,
como tudo, antigamente.
Pesado, grosso, pastoso.
(Por sinal que muito ruim.)

Eu era menina em crescimento.
Gulosa,
abria os olhos para aquele bolo
que me parecia tão bom
e tão gostoso.

A gente mandona lá de casa
cortava aquele bolo
com importância.
Com atenção.
Seriamente.
Eu presente.
Com vontade de comer o bolo todo.
Era só olhos e boca e desejo
daquele bolo inteiro.

Minha irmã mais velha
governava. Regrava.
Me dava uma fatia,
tão fina, tão delgada...
E fatias iguais às outras manas.
E que ninguém pedisse mais!
E o bolo inteiro,
quase intangível,
se guardava bem guardado,
com cuidado,
num armário, alto, fechado,
impossível.

Era aquilo uma coisa de respeito.
Não pra ser comido
assim, sem mais nem menos.
Destinava-se às visitas da noite,
certas ou imprevistas.
Detestadas da meninada.

Criança, no meu tempo de criança,
não valia mesmo nada.
A gente grande da casa
usava e abusava
de pretensos direitos
de educação.

Por dá-cá-aquela-palha,
ralhos e beliscão.
Palmatória e chineladas
não faltavam.
Quando não,
sentada no canto de castigo
fazendo trancinhas,
amarrando abrolhos.
“Tomando propósito”.
Expressão muito corrente e pedagógica.

Aquela gente antiga,
passadiça, era assim:
severa, ralhadeira.

Não poupava as crianças.
Mas, as visitas...
– Valha-me Deus!...
As visitas...
Como eram queridas,
recebidas, estimadas,
conceituadas, agradadas!

Era gente superenjoada.
Solene, empertigada.
De velhas conversas
que davam sono.
Antiguidades...

Até os nomes, que não se percam:
D. Aninha com Seu Quinquim.
D. Milécia, sempre às voltas
com receitas de bolo, assuntos
de licores e pudins.
D. Benedita com sua filha Lili.
D. Benedita – alta, magrinha.
Lili – baixota, gordinha.
Puxava de uma perna e fazia crochê.
E, diziam dela línguas viperinas:
“– Lili é a bengala de D. Benedita”.
Mestra Quina, D. Luisalves,
Saninha de Bili, Sá Mônica.
Gente do Cônego Padre Pio.

D. Joaquina Amâncio...
Dessa então me lembro bem.
Era amiga do peito de minha bisavó.
Aparecia em nossa casa
quando o relógio dos frades
tinha já marcado 9 horas
e a corneta do quartel, tocado silêncio.
E só se ia quando o galo cantava.

O pessoal da casa,
como era de bom-tom,
se revezava fazendo sala.
Rendidos de sono, davam o fora.
No fim, só ficava mesmo, firme,
minha bisavó.

D. Joaquina era uma velha
grossa, rombuda, aparatosa.
Esquisita.
Demorona.
Cega de um olho.
Gostava de flores e de vestido novo.
Tinha seu dinheiro de contado.
Grossas contas de ouro
no pescoço.

Anéis pelos dedos.
Bichas nas orelhas.
Pitava na palha.
Cheirava rapé.
E era de Paracatu.
O sobrinho que a acompanhava,
enquanto a tia conversava
contando “causos” infindáveis,
dormia estirado
no banco da varanda.
Eu fazia força de ficar acordada
esperando a descida certa
do bolo
encerrado no armário alto.
E quando este aparecia,
vencida pelo sono já dormia.

E sonhava com o imenso armário
cheio de grandes bolos
ao meu alcance.
De manhã cedo
quando acordava,
estremunhada,
com a boca amarga,
– ai de mim –
via com tristeza,
sobre a mesa:
xícaras sujas de café,
pontas queimadas de cigarro.
O prato vazio, onde esteve o bolo,
e um cheiro enjoado de rapé.

Fonte: Coralina, C. 2004. Melhores poemas, 2ª edição. SP, Global. Poema originalmente publicado em 1965.

13 agosto 2007

Dez meses no ar

F. Ponce de León

Ontem, domingo (12/8), o Poesia contra a guerra completou dez meses no ar.

Desde o balanço mensal anterior, “O tempo de uma gravidez”, foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Amaral Maia, Antero de Quental, Carlos de Oliveira, Dave Pirner, Frances Ashcroft, Geraldo Espíndola, Gonçalves Dias, Henriqueta Lisboa, Henry David Thoreau, Jorge Wanderley, José Régio, Kate Bush, Majela Colares, Noel Rosa, Orides Fontela, Paul Dirac, Paula Padilha, Raul de Leoni, Robert M. Pirsig e Stephen Hawking. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Andrea Mantegna, Goya, Jean-François Millet e Pierre Bonnard.

12 agosto 2007

Cântico negro

José Régio

“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade,
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: “vem por aqui”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe,
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei por onde vou,
– Sei que não vou por aí!

Fonte: Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema originalmente publicado em 1925.

11 agosto 2007

Poema da improvável véspera

Majela Colares

Foi em vão a batalha da voz tensa
que findou na gagueira atormentada
mais em vão foi pensar que não se pensa

quanto a vida é promessa, só, mais nada
que se oculta na fala e se afugenta
na certeza da angústia aprofundada

nos suspiros da ânsia que alimenta
os desejos ambíguos desvendados
essa febre que a mente humana inventa

refúgio de mistérios confinados
pressentidos em gestos inconstantes
dos momentos agrestes exalados

entre os mitos dos sensos conflitantes
que a memória retarda quando ausente
o perfeito equilíbrio exposto e antes

da sensata mudez que se consente
no final da batalha a reticência
conspirando a cegueira do presente

em linguagem fingindo à evidência...
nos limites dos sons ecoa a infância
reescrita nos olhos da existência.

Fonte: Colares, M. 1997. O soldador de palavras. SP, Ateliê Editorial.

10 agosto 2007

Tormento do ideal

Antero de Quental

Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,

Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre;
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a cor, bem como a nuvem que erra
Ao pôr-do-sol e sobre o mar discorre.

Pedindo à forma, em vão, a idéia pura,
Tropeço, em sombras, na matéria dura,
E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o batismo dos poetas,
E assentado entre as formas incompletas
Para sempre fiquei pálido e triste.

Fonte: Quental, A. 2004. Melhores poemas. SP, Global. Poema originalmente publicado em 1886.

09 agosto 2007

Para amanhã

Jorge Wanderley

Nem sempre é o vento que abre estas janelas
E agita vegetais já resignados.
Às vezes, noite-a-dentro, um ser antigo
Surgido de outros montes lança um dado
Acaso tumultuário entre cortinas:
Espírito de amargas caravelas,
Sabor de sangue ao fôlego tomado,
Chega (nem sempre o vento) e busca abrigo
Na sala, pelos móveis, lado a lado
Com rosas e camélias meninas.

Nem sempre a noite cobre estas montanhas,
Deita olhos negros, densos, no jardim.
Às vezes, entre plantas e canteiros
Dança uma névoa de flores carpida
E noivas anuncia do infinito:
Essa promessa raro se acompanha
De fatos como abelhas e jasmins.
Cobre (nem sempre a noite) o tempo inteiro
Uma sofrida mágica, partida
Em ser e não estar, um quase grito.

Nem sempre chega até meu nome a arte
Para me converter no aturdimento
Às vezes chega apenas a certeza
Mas com vazias malas, enganada,
Um pássaro empalhado como peito:
Dama sagrada, ainda assim reparte
Migalhas de seu sonho, um rudimento.
Manhãs (nem sempre a arte) da pobreza
Urdidas na rotina palmilhada
Explodem sem ruído e sem proveito.

Ainda assim, nem sempre é de extinção
O canto-orvalho às vezes consumado.
Um globo se imagina todo luz
E, gota dágua, um pássaro impreciso
Pode deixar-lhe acesa a irrealidade:
Dali pode partir um raio à mão
Que serve oculta o bem mais preservado.
Algo (nem sempre o orvalho) assim reduz
O metro de cantares indecisos
Ao casto desencontro da verdade.

Fonte: Wanderley, J. 2001. Antologia poética. SP, Ateliê Editorial. Poema originalmente publicado em 1974 e dedicado “A Ricardo Oliveira que tem o mar à direita.”

08 agosto 2007

Três de maio de 1808


Goya [Francisco de Goya y Lucientes] (1746-1828). El tres de mayo de 1808 en Madrid [Los fusilamentos de la montaña del Príncipe Pío]. 1814.

Fonte da foto: Wikipedia.


07 agosto 2007

Legenda dos dias

Raul de Leoni

O Homem desperta e sai cada alvorada
Para o acaso das cousas... e, à saída,
Leva uma crença vaga, indefinida,
De achar o Ideal nalguma encruzilhada...

As horas morrem sobre as horas... Nada!
E ao Poente, o Homem, com a sombra recolhida,
Volta, pensando: “Se o Ideal da Vida
Não veio hoje, virá na outra jornada...”

Ontem, hoje, amanhã, depois, e, assim,
Mais ele avança, mais distante é o fim,
Mais se afasta o horizonte pela esfera;

E a Vida passa... efêmera e vazia:
Um adiamento eterno que se espera,
Numa eterna esperança que se adia...

Fonte: Leoni, R. 1998. Luz mediterrânea. BH, Garnier. Poema originalmente publicado em 1922.

06 agosto 2007

A teia

Orides Fontela

A teia, não
mágica
mas arma, armadilha

a teia, não
morta
mas sensitiva, vivente

a teia, não
arte
mas trabalho, tensa

a teia, não
virgem
mas intensamente prenhe:

no
centro
a aranha espera.


Fonte: Fontela, O. 1996. Teia: poemas, 2a edição. SP, Geração Editorial.

05 agosto 2007

Os lírios

Henriqueta Lisboa

Certa madrugada fria
irei de cabelos soltos
ver como crescem os lírios.

Quero saber como crescem
simples e belos – perfeitos! –
ao abandono dos campos.

Antes que o sol apareça,
neblina rompe neblina
com vestes brancas, irei.

Irei no maior sigilo
para que ninguém perceba
contendo a respiração.

Sobre a terra muito fria
dobrando meus frios joelhos
farei perguntas à terra.

Depois de ouvir-lhe o segredo
deitada por entre os lírios
adormecerei tranqüila.

Fonte: Lisboa, H. 2001. Melhores poemas. SP, Global. Poema originalmente publicado em 1945.


03 agosto 2007

O universo numa casca de noz

Stephen Hawking

Eu poderia viver recluso numa casca de noz e me considerar rei do espaço infinito...Shakespeare, Hamlet, Ato 2, Cena 2.

Hamlet talvez quisesse dizer que embora nós, seres humanos, sejamos muito limitados fisicamente, nossas mentes estão livres para explorar todo o universo e para avançar audaciosamente para onde até mesmo Jornada nas estrelas teme seguir – se os maus sonhos permitirem.
[...]

A coisa mais óbvia sobre o espaço é que ele continua e continua e continua. Isso tem sido confirmado por modernos instrumentos, como o telescópio Hubble, que nos permite sondar profundamente o espaço. O que vemos são bilhões e bilhões de galáxias de várias formas e tamanhos. Cada galáxia possui incontáveis bilhões de estrelas, muitas com planetas à sua volta. Vivemos em um planeta que orbita uma estrela em um braço externo na galáxia espiral Via Láctea. [...]

Embora o universo pareça ser quase igual em cada posição do espaço, ele está definitivamente mudando no tempo. Isso foi percebido no início do século 20. Até então, pensava-se que o universo fosse essencialmente constante no tempo. Ele poderia ter existido por um tempo infinito, mas isso parecia levar a conclusões absurdas. Se as estrelas viessem irradiando por um tempo infinito, teriam aquecido o universo às suas temperaturas. Mesmo à noite, o céu inteiro seria tão brilhante quanto o Sol, porque toda linha de visão terminaria em uma estrela ou em uma nuvem de poeira que teria sido aquecida até que ficasse tão quente quanto as estrelas.

A observação que todos fazemos, de que o céu à noite é escuro, é muito importante. Isso significa que o universo não pode ter sempre existido no estado que vemos atualmente. Algo deve ter acontecido no passado para fazer as estrelas se acenderem a um tempo finito, o que significa que a luz de estrelas muito distantes ainda não teve tempo de nos alcançar. Isso explicaria porque o céu noturno não brilha em todas as direções.
[...]

Fonte: Hawking, S. 2002. O universo numa casca de noz, 2a edição. São Paulo, Mandarim.

01 agosto 2007

Cunhataiporã

Geraldo Espíndola

Onde você quer ir meu bem?
Diga logo pra eu ir também
Você quer pegar aquele trem?
É naquele trem que eu vou também
É pra Ponta-Porã?
Cunhataiporã chero rai rô
É pra Corumbá?
É lá que eu vou pegar um barco
E descer o rio Paraguai
Cantando as canções que não se ouvem mais

Fonte: álbum Pássaros na garganta (1982), de Tetê Espíndola.


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