30 setembro 2007

Em defesa de um matemático

G. H. Hardy

10.
O matemático, como o pintor ou o poeta, é um desenhista. Se os seus desenhos são mais duradouros que os deles, é porque são feitos com idéias. O pintor desenha com formas e cores, o poeta com palavras. [...]

Os desenhos do matemático, como os do pintor ou do poeta, devem ser belos; as idéias, como as cores ou as palavras, precisam entreligar-se de maneira harmoniosa. [...]

Seria difícil encontrar um homem instruído que fosse totalmente insensível aos atrativos estéticos da matemática. Pode ser muito difícil definir a beleza matemática, mas isso vale igualmente para a beleza de qualquer tipo – podemos não saber muito bem o que é um belo poema, mas isso não nos impede de reconhecer um quando o lemos. [...]

O fato é que existem poucas matérias mais “populares” que a matemática. A maioria das pessoas entende um pouco de matemática, assim como a maioria das pessoas consegue apreciar uma melodia agradável; e provavelmente existem mais pessoas interessadas em matemática do que em música. As aparências podem dar a entender o contrário, mas é fácil explicar isso. A música pode ser usada para estimular as emoções das massas, ao passo que a matemática não, e a incapacidade musical é tida (sem dúvida com razão) como uma imperfeição leve, ao passo que a maioria das pessoas tem tanto medo do nome da matemática que está sempre pronta, sem falsa modéstia, a exagerar a sua própria burrice matemática.

Um pouquinho de reflexão é suficiente para por a nu o absurdo da “superstição literária”. Há uma quantidade enorme de enxadristas em todos os países civilizados – na Rússia, quase toda a população instruída –, e todo jogador de xadrez consegue reconhecer e apreciar um jogo ou problema “bonito”. Não obstante, um problema de xadrez é simplesmente um exercício de matemática pura (não é esse o caso do jogo, já que a psicologia também desempenha nele o seu papel), e todos que consideram “bonito” um problema estão aplaudindo-lhe a beleza matemática, mesmo que seja uma beleza de espécie relativamente inferior. Os problemas de xadrez são as cantigas de roda da matemática.

A mesma coisa nos fica patente – num nível mais baixo, mas que envolve um público mais amplo – no caso do bridge, ou, descendo ainda mais, no das colunas de enigmas dos jornais populares. A imensa popularidade desses enigmas é, em sua imensa maior parte, um tributo aos atrativos da matemática elementar, e os melhores criadores de enigmas, como Dudeney ou “Caliban”, usam pouco mais que isso. Eles conhecem o seu negócio; o que o público quer é um pouco de estímulo intelectual, e nada produz um efeito tão estimulante quanto o da matemática.
[...]

Fonte: Hardy, G. H. 2000 [1940]. Em defesa de um matemático. SP, Martins Fontes.

29 setembro 2007

Nu descendo escada


Marcel Duchamp (1887-1968). Nu descendant un escalier (No. 2). 1912.

Fonte da foto: Olga’s Gallery.

28 setembro 2007

Terra infirma

Egberto Penido

Tarde da noite, a tempestade me acorda.
Retorno de alguma dimensão perdida
de meu próprio ser.
A alma parece um corredor onde
passos hesitantes ressoam.
Impossível voltar a dormir.
Na trama de meu mundo interior
me lacero
em arestas de antigos dilemas.
Nesta terra infirma em vão me interrogo:
... e a mudança de coração, a esquina que necessita
ser virada,
a vida que tem de ser perdida para ser reencontrada?
... e a dureza inata, a rigidez que precisa ceder
para que se possa passar pelo olho da agulha?

O vento amainou. Fecho os olhos
e sem desesperar
continuo procurando nos recessos de meu coração,
a senda que poderá me levar
à liberação de mim mesmo.

Fonte: Penido, E. 2001. Sombras e distâncias. SP, Ateliê Editorial.

27 setembro 2007

Casa-noite

Antônio Moura

Casa-noite, quatro
janelas

através, um grilo

ópera todo o seu ser
composto de arredores – paisagem
e quase só som por dentro

Entre

norte, sul, leste, oeste, cinco
sentidos quase janelas
abertas ao

não dito

Alfabeto-Grilo

Fonte: Moura, A. 1999. Hong-Kong & outros poemas. SP, Ateliê Editorial.

26 setembro 2007

Sparks

Mauro Cappelletti

Raras centelhas
no espaço escuro
átimos
de efêmeras paixões
de desordenadas visões.
É esta a nossa vida;
o resto é sono,
o sono sem fim
que foi,
o sono sem fim
que será,
misterioso imenso negro fantasma
que mente humana
não pode compreender
ainda quando
mudado em devastadora tormenta
penetra e sacode o nosso espírito
atraindo-lhe
centelhas raras
no espaço escuro.

Fonte: Cappelletti, M. 1994. Centelhas. RJ, Nova Fronteira.

25 setembro 2007

A mais suave

Henriqueta Lisboa

Por milagre, a flor mais suave,
não a colheram os ventos.
Ficou na haste toda a noite,
trêmula e alta sob a chuva.

Quando foi de madrugada,
o jardim pasmou:
suas corolas jaziam
sobre a terra umedecida;
uma entretanto, a mais suave,
sustinha-se contra a aragem.

As outras flores por terra,
dálias, papoulas, crisântemos,
– ruivas cabeças – plasmavam
seus espasmos derradeiros:
mártires decapitados,
magdalas em desespero.

Nas fúrias espirituais
e nas ardências do sangue
dir-se-ia que estavam vivas.
Entretanto a flor mais suave,
como que ausente do mundo
na sua pureza lívida,
era um pequeno cadáver
que todo o jardim chorava.

Fonte: Lisboa, H. 2001. Melhores poemas. SP, Global. Poema originalmente publicado em 1941.

24 setembro 2007

Sinais diacríticos e transliterações

Umberto Eco

Transliterar significar transcrever um texto adotando um sistema alfabético diferente do original. A transliteração não pretende interpretar foneticamente um texto, mas reproduzir o original letra por letra de modo que seja possível a qualquer um reconstituir o texto em sua grafia primitiva, mesmo conhecendo apenas os dois alfabetos.

Recorre-se à transliteração para a maioria dos nomes históricos e geográficos, como também apara as palavras que não possuem correspondência em nossa língua.

Os sinais diacríticos são sinais que se acrescentam às letras normais do alfabeto para dar-lhes um particular valor fonético. São, pois, sinais diacríticos os nossos acentos comuns (por exemplo, o acento agudo ‘´’ dá ao ‘e’ final da palavra ‘pé’ uma pronúncia aberta), bem como a cedilha, o til e também o trema alemão de ‘ü’ e os sinais menos conhecidos de outros alfabetos: ‘ĕ’ russo, ‘ø’ dinamarquês, ‘ł’ polonês etc.

Numa tese que não seja de literatura polonesa, você poderá, por exemplo, eliminar a barra do ‘ł’: ao invés de escrever ‘Łodz’, escreverá ‘Lodz’, como fazem os jornais. Mas, para as línguas latinas, as exigências costumam ser maiores. Vejamos alguns casos.

Respeitamos, em qualquer livro, o uso de todos os sinais particulares do alfabeto francês. Eles possuem todos um tecla correspondente para as minúsculas, nas máquinas de escrever comuns. Para as maiúsculas, escrevemos Ça ira, mas Ecole, não École, A la reserche, não À la reserche..., porque, em francês, mesmo em tipografia, não se acentuam as maiúsculas.

Respeitamos sempre, quer para as minúsculas quer para as maiúsculas, o uso dos três sinais particulares do alfabeto alemão: ä, ö, ü. E escrevemos sempre ü, não ue (Führer, não Fuehrer).

Respeitamos, em qualquer livro, tanto para as minúsculas como para as maiúsculas, o uso dos sinais particulares do alfabeto espanhol: as vogais com acento agudo e o n com til: ñ.

Quanto às outras línguas, é preciso decidir caso por caso, e, como sempre, a solução será diferente conforme se cite uma palavra isolada ou se faça a tese sobre essa língua específica. [...]

Fonte: Eco, U. 1996 [1977]. Como se faz uma tese, 14ª edição. SP, Perspectiva.

23 setembro 2007

Domingo à tarde


Georges Seurat (1859-1891). Un dimanche après-midi sur l’Île de la Grande Jatte. 1885.

Fonte da foto: Wikipedia.

22 setembro 2007

Acidente de viação

José Saramago

Vago, secreto, alheio e disfarçado
No conforme cortejo da cidade,
Dobro esquinas e paro separado,
À espera de mim mesmo ou da metade
Que ficou sem saber do outro lado.

Ponho letras bastardas a deslado
Das palavras cruzadas do jornal,
Dou um grito de aviso, arrepiado,
Contra a luz encarnada do sinal
E piso, como brasa, o chão molhado.

Fica atrás o meu fato amarrotado,
A sangrar das costuras esgarçadas,
Acode o alfaiate convocado,
Enquanto vou pensando gargalhadas,
Vivo, secreto, alheio e disfarçado.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1966.

21 setembro 2007

A mansarda

Camilo Guimarães

Havia o tempo guardado
Entre os livros escolhidos,
E a erudição do silêncio
Desmotivando aos acasos.

Havia a pontualidade
Fixando o escolher das datas
De viagens acontecidas,
E solidão compensada.

Nem o querer se iludia
Com afeições e lembranças
Que a recompensa guardara
Pelo muito de se ter.

Nem os quadros questionavam
O espelho, que refletia
O ser ausente da vida,
Artifício de passagem.

Apenas, o estar consciente
Da emoção que se vigia,
Do pensar que se angustia,
Do partir que não se ausenta.

Fonte: Guimarães, C. 1997. Lembranças de esquecer. SP, Ateliê Editorial.

20 setembro 2007

Felicidade, infelicidade

Marguerite Yourcenar

É tarde. O estacionamento embaixo está quase vazio. As luzes são raras; e a torre Eiffel em miniatura ao fundo, equivalente no sentido oposto das “japonarias” do século 19 na Europa, tem apenas uma pontinha vermelha no topo.

Neste quarto banal, sem ligação com o passado e o futuro (onde por isso somos mais nós mesmos), no meio de um dia ou de uma noite qualquer, esse milagre que bruscamente se realiza, essa graça que por vezes desce: não um instante de felicidade, porque a felicidade não se conta em instantes, mas a súbita consciência de que a felicidade nos habita. Os objetos que compõem a vida regular de repente numa outra ordem voltam para nós sua face ensolarada. Enlevo do espírito e dos sentidos (Baudelaire não se enganou), levitação em que a alma flutua como sobre uma nuvem de ouro. Assim, no avião, as nuvens medonhas sob as quais a terra sufoca transformam-se a nossos pés em cintilantes geleiras brancas e azuis. Pura felicidade que em outros momentos poderia ser igualmente pura infelicidade. Bastaria que os mesmos elementos voltassem para nós sua face sombria. Nos dois casos, há plenitude, mas a da felicidade é solar.

A torre Eiffel autêntica e seu símile em Tóquio não passam de um cenário sob o qual o caos subsiste. Mas a felicidade, se sobrevém, dá por breve tempo um sentido às coisas: pelo menos uma parcela se sente liberta, salva. Na infelicidade, tanto quanto é possível, a coragem faz as vezes do sol.

Fonte: Yourcenar, M. 1992. A volta da prisão. RJ, Nova Fronteira.

19 setembro 2007

À terra provisória

Bruno Tolentino

Adeus, cimos e vales e veredas,
e bosques e clareiras e campinas
soltas ao vento, sacudindo as crinas
das espigas de sol na luz de seda.

Adeus, troncos e copas e alamedas,
esmeraldas selvagens que as neblinas
salpicavam de prata, adeus, colinas
que iam subindo como labaredas

de cobalto no ar... Adeus, beleza
irrepetível, que me viu nascer
e toca-me deixar: a natureza

também é feita de deixar de ser,
e eu levo agora a sombra e deixo a presa
à luz do provisório amanhecer.

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema originalmente publicado em 1995.

18 setembro 2007

Quinze mil visitas

F. Ponce de León

No meio do expediente de ontem, segunda-feira, o Poesia contra a guerra superou a marca das quinze mil visitas. Do balanço anterior – ver “Dez mil visitas”, em 4/7 – até ontem (17/9) ocorreram em média cerca de 65,8 visitas/dia. Ontem, coincidentemente, foi alcançado também um novo recorde positivo de visitantes únicos em um só dia: 138.

17 setembro 2007

Salieri e Mozart

F. Murray Abraham

Acredito que Salieri deve ter reagido a Mozart do modo que a maioria dos artistas o faz – com espanto, humildade, inveja e, finalmente, com gratidão. Pois, ao fim, a fonte da criação é acessível a todos nós, e aqueles que são abençoados pelo gênio são apenas mensageiros que trazem boas novas a um mundo escuro e por vezes insuportável.

Fonte: Solman, J. 1991. Mozartiana: dois séculos de notas, citações e anedotas sobre Wolfgang Amadeus Mozart. RJ, Nova Fronteira.

16 setembro 2007

O grito


Edvard Munch (1863-1944). Shrik. 1893

Fonte da foto: Olga’s Gallery.

15 setembro 2007

Vinte anos depois

Horácio Costa

Vinte Anos Depois é um romance de Alexandre Dumas
duas décadas não são nada
é a média de vida do homem primitivo do escravo romano
é a idade de um cão muito muito velho
é a média de glória de um artista maior
o tempo sem celulite de uma cortesã
o lapso de procriação depois do casamento
quatro ou cinco mandatos políticos o auge de um Império
vinte anos levou a Constantino reformar Bizâncio
vinte anos fizeram a fortuna de Frick Morgan e Du Pont
vinte anos entre a apresentação no Templo e a crucificação
vinte anos é a matéria dos memorialistas
vinte anos e o povo se cansa da Revolução
vinte anos depois Odette está casada e Marcel morto
a roda o computador pessoal a moda das perucas brancas se popularizaram em não mais de vinte anos
Quéfren e Miquerinos construíram suas pirâmides em vinte curtos anos
vinte anos depois o cadáver está frio olvidadíssimo
vinte anos de exercício e o êxtase desce ao asceta
nada nada são duas décadas vinte vezes nada
a ponte nova entre aqui e ali está congestionada hoje
a então chamada ponte do futuro já não serve mais
agora quando estás nela também estás aqui
tinhas o cabelo solto tinhas a rédea solta
soltas tinhas as palavras
há vinte anos
entre aqui e ali

Fonte: Costa, H. SP. 1999. Quadragésimo. SP, Ateliê Editorial.

14 setembro 2007

Dédalo

Jaime Torres Bodet

Enterrado, vivo
Em um infinito
Dédalo de espelhos
E me ouço, me sigo,
Me busco no liso
Muro do silêncio.

Porém não me encontro.

Olho, escuto, apalpo.
Por todos os ecos
O meu próprio acento
Está pretendendo
Chegar-me ao ouvido...

Porém não o advirto.

Alguém está preso
Aqui neste frio,
Lúcido recinto,
Dédalo de espelhos...
Alguém que eu imito.
Se parte, me afasto;
Se torna, regresso;
E se dorme, sonho...
– “És tu?” eu me digo.

Porém não respondo.

Cercado, ferido
Pelo mesmo acento
– Meu? Não sei dizê-lo –
Contra o eco mesmo
Da mesma lembrança,
Eu nesta lembrança,
Eu neste infinito
Dédalo de espelhos
Enterrado vivo.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1937.

13 setembro 2007

Quase um ano...

F. Ponce de León

Ontem, quarta-feira (12/9), o Poesia contra a guerra completou onze meses no ar.

Desde o balanço mensal anterior, “Dez meses no ar”, foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Aguinaldo Gonçalves, Alfred W. Crosby, Alvarenga Peixoto, Betty Thatcher, Camilo Pessanha, Carlos Fiolhais, Cora Coralina, Douglas Messerli, Geraldo Falcão, Gerard Manley Hopkins, João Carlos Teixeira Gomes, José Nêumanne, Mário Chamie, Omar Ibsen Ibrahim El-Khaiami, Peter Ward, Victor Hugo e Vimala Devi. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Eugène Boudin, Johannes Vermeer, Joshua Reynolds e Paul Gauguin.

12 setembro 2007

As leis dos planetas

Carlos Fiolhais

Desde o tempo de Galileu e Newton, que o Sistema Solar tem sido considerado um sistema ordenado, um sistema obediente às leis da física que vêem encarrapachadas nos livros. Todo o comportamento, tanto de maçãs e luas como de planetas e estrelas, pode ser explicado invocando a lei da gravitação universal de Newton, segundo a qual a força entre dois corpos celestes varia proporcionalmente ao inverso do quadrado da distância, e a segunda lei de Newton, que diz que um corpo responde a uma força mudando a sua velocidade.

No século 18, século das luzes, julgava-se que já se tinha feito totalmente luz sobre o Sistema Solar. O rei francês Luís 15, sucessor do Rei-Sol Luís 14, e antecessor do guilhotinado Luís 16, mandou construir no Palácio de Versalhes uma nova ala e no meio dela mandou colocar um mecanismo de relógio muito sofisticado. Esse relógio reproduzia bastante bem o movimento dos vários planetas conhecidos na altura em torno de um sol central e majestático. Incluía também algumas luas a girar pacatamente em torno dos respectivos planetas. O Sol impunha a ordem à sua volta, tal como o rei, afinal, impunha a ordem em França (ou, pelo menos, procurava impor; o reinado de Luís 15 foi um tanto ou quanto atribulado). O planetário do rei ia girando devagar, no palácio, numa imitação que se pretendia perfeita do movimento do mundo.

Fonte: Fiolhais, C. 1994. Física divertida, 4a edição. Lisboa, Gradiva.

11 setembro 2007

Sin embargo me muevo

Pablo Neruda

De cuando en cuando soy feliz!,
opiné delante de un sábio
que me examinó sin pasión
y me demonstró mis errores.

Tal vez no había salvación
para mis dientes averiados,
uno por uno se extraviaron
los pelos de mi cabellera:
mejor era no discutir
sobre mi tráquea cavernosa:
en cuanto al cauce coronário
estaba lleno de advertencias
como el hígado tenebroso
que no me servia de escudo
o este riñón conspirativo.
Y con mi próstata melancólica
y los caprichos de mi uretra
me conducían sin apuro
a un analítico final.

Mirando frente a frente al sábio
sin decidirme a sucumbir
le mostré que podía ver,
palpar, oír y padecer
en otra ocasión favorable.
Y que me dejara el placer
de ser amado y de querer:
me buscaría algún amor
por un mes o por una semana
o por un penúltimo día.

El hombre sabio y desdeñoso
me miró con la indiferencia
de los camellos por la luna
y decidió orgullosamente
olvidarse de mi organismo.

Desde entonces no estoy seguro
de si yo debo obedecer
a su decreto de morirme
o si debo sentirme bien
como mi cuerpo me aconseja.

Y en esta duda yo no sé
si dedicarme a meditar
o alimentarme de claveles.

Fonte: Neruda, P. 2007 [2004]. O coração amarelo. Porto Alegre, L&PM.

10 setembro 2007

O périplo do imemorial

Aguinaldo Gonçalves

1.
mas é na terra que a terra da terra espera:
o mesmo cheiro
a mesma monodia dos sinos
o mesmo desenho de janelas

2.
ouço ao longe as pegadas que se mostram
aos meus olvidados firmamentos

vermelho

arranco-lhe as entranhas
como raízes
intactas

3.
é esta mancha que
ofusca o novelo de meus dias
fios de cobre a prender meus dedos
na praça da Matriz

4.
Mondrian
surge na esquina
com chapéu na mão

5.
a máquina roçando a nuca
poros amarelos
e a poeira entrando nos olhos
doloridos

6.
nestas águas claras
o poço mais profundo
tem posse de um tesouro

7.
rio manso
corre
para o mar bravio

8.
peixes nadam
peixes andam
entre águas

9.
mesmo que todo o calçamento esteja solto
procurarei os pontos certos
e chegarei ao porto
sem vento

Fonte: Gonçalves, A. 2000. Vermelho. SP, Ateliê Editorial. O título completo da obra seria “O périplo do imemorial (em nove movimentos)”.

09 setembro 2007

Arte da pintura


Johannes Vermeer (1632-1675). De Schilderkunst. 1666-1668.

Fonte da foto: Wikipedia.

08 setembro 2007

Mapa

Murilo Mendes

Me colaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.
Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluído,
depois chego à consciência da terra, ando como os outros,
me pregam numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.
Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem
nem o mal.
Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,
tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamentos,
não acredito em nenhuma técnica.
Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,
é por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens imaginários,
depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,
na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim
Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações...
Me desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida.
Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.
Triângulos, estrelas, noite, mulheres andando,
presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção
o mundo vai mudar a cara,
a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.

Andarei no ar.
Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,
me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.
Tudo transparecerá:
vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,
o vento que vem da eternidade suspenderá os passos,
dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,
vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as almas no ar,
me insinuarei nos quatro cantos do mundo.

Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.
Detesto os que se tapeiam,
os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens “práticos”...
Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,
os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,
as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito...
viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.
Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,
dos amores raros que tive,
vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
estou no ar,
na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
no meu quarto modesto da praia de Botafogo,
no pensamento dos homens que movem o mundo,
nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,
sempre em transformação.

Fonte: Moriconi, I. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema originalmente publicado em 1930.

07 setembro 2007

Branco e vermelho

Camilo Pessanha

A dor, forte e imprevista,
Ferindo-me, imprevista,
De branca e de imprevista
Foi um deslumbramento,
Que me endoidou a vista,
Fez-me perder a vista,
Fez-me fugir a vista,
Num doce esvaimento.

Como um deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Fez-se em redor de mim.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso...
Que delícia sem fim!

Na inundação da luz
Banhando os céus a flux,
No êxtase da luz,
Vejo passar, desfila
(Seus pobres corpos nus
Que a distancia reduz,
Amesquinha e reduz
No fundo da pupila).

Na areia imensa e plana
Ao longe, a caravana
Sem fim, a caravana
Na linha do horizonte,
Da enorme dor humana,
Da insigne dor humana...
A inútil dor humana!
Marcha, curvada a fronte.

Até ao chão, curvados,
Exaustos e curvados,
Vão um a um, curvados,
Os seus magros perfis;
Escravos condenados,
No poente recortados,
Em negro recortados,
Magros, mesquinhos, vis.

A cada golpe tremem
Os que de medo tremem,
E as pálpebras me tremem,
Quando o açoite vibra.
Estala! e apenas gemem,
Pavidamente gemem,
A cada golpe gemem,
Que os desequilibra.

Sob o açoite caem,
A cada golpe caem,
Erguem-se logo. Caem,
Soergue-os o terror...
Até que enfim desmaiem!
Por uma vez desmaiem!
Ei-los que enfim se esvaem,
Vencida, enfim, a dor...

E ali fiquem serenos,
De costas e serenos...
Beije-os a luz, serenos,
Nas amplas frontes calmas.
Ó céus claros e amenos,
Doces jardins amenos,
Onde se sofre menos,
Onde dormem as almas!

A dor, deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Foi um deslumbramento.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso
Num doce esvaimento.

Ó Morte, vem depressa,
Acorda, vem depressa,
Acode-me depressa,
Vem-me enxugar o suor,
Que o estertor começa.
É cumprir a promessa.
Já o sonho começa...
Tudo vermelho em flor...

Fonte: Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema originalmente publicado em 1920.

06 setembro 2007

Soneto da lição zoológica

João Carlos Teixeira Gomes

Quando menino nunca amei leões.
Preferi os animais mais delicados.
Por patos mansos e por camaleões
meu zôo infantil era habitado.

Tive um cão que foi predestinado:
por sua amada se perdeu em fuga.
E um gafanhoto místico e alado
que pulava mais alto que uma pulga.

Amei abelhas, lagartos, formigões
e galos magros de expelir auroras.
Fiéis amigos que se foram embora!

Todos eles me encheram de lições
de ternura que, homem, desaprendi...
De leões só vim saber quando cresci.

Fonte: Gomes, J. C. T. 1988. A esfinge contemplada. RJ, Nova Fronteira.

05 setembro 2007

Pangéia

Alfred W. Crosby

Há 200 milhões de anos, quando os dinossauros ainda perambulavam por aí, todos os continentes estavam juntos, num supercontinente a que os geólogos deram o nome de Pangéia. Ele se estendia por dezenas de graus de latitude, e por isso podemos inferir que apresentava algumas variações de clima. Nessa massa única de terra não havia grande variedade de formas de vida. [...]

Há uns 180 milhões de anos, a Pangéia começou a rachar e a romper-se, como algum imenso iceberg plano que começasse a derreter no calor da corrente do Golfo. Primeiro, ele se dividiu em dois grandes continentes e, em seguida, em massas menores, que se tornaram, com o tempo, os continentes que conhecemos. [...] [E]m linhas gerais, a Pangéia rompeu-se ao longo de linhas de intensa atividade sísmica, que mais tarde se converteram em cordilheiras submersas. A mais investigada dessas cordilheiras é a do Meio-Atlântico, que ferve e borbulha do mar da Groenlândia ao monte submarino Spiess, a vinte graus de latitude e vinte graus de longitude a sudoeste da Cidade do Cabo, na África do Sul. Dessa e de outras antigas cordilheiras submersas verteu (e, em alguns casos, ainda verte) a lava que construiu o novo fundo dos oceano, arrastando os continentes, de um lado e outro de determinada cordilheira, para cada vez mais longe uns dos outros.

Fonte: Crosby, A. W. 1993. Imperialismo ecológico. SP, Companhia das Letras.

04 setembro 2007

Litoral


Eugène [Louis] Boudin (1824-1898). Rivage du Pontrieux, Côtes-du-Nord. 1874.

Fonte da foto: Wikipedia.

02 setembro 2007

Eu não lastimo o próximo perigo

Alvarenga Peixoto

Eu não lastimo o próximo perigo,
uma escura prisão, estreita e forte;
lastimo os caros filhos, a consorte,
a perda irreparável de um amigo.

A prisão não lastimo, outra vez digo,
nem o ver iminente o duro corte;
que é ventura também achar a morte,
quando a vida só serve de castigo.

Ah, quem já bem depressa acabar vira
este enredo, este sonho, esta quimera,
que passa por verdade e é mentira!

Se filhos, se consorte não tivera,
e do amigo as virtudes possuíra,
um momento de vida eu não quisera.

Fonte: Peixoto, A. 2002. Melhores poemas. SP, Global.

01 setembro 2007

Não me fales com essa tua voz

Vimala Devi

Não me fales com essa tua voz de silêncio
De torturar os mortos,
Tu que escalaste a montanha inacessível
Da minha alma...

Porque não choras, não gritas,
E olhas com esse teu rosto azul
A lua do teu coval
Como um esqueleto descarnado de ideais,
Se és testemunha e não vítima
Desta humanidade incolor?
Porque não ergues o estandarte triunfal
Dos “excluídos para sempre”?

Oh, não me fales da putrefacção,
Nem da extinção da tua existência impoluta,
Se não me prometeres que vais ser o Sol Verde
Tingindo os Outonos de cabelos amarelos!

Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura.

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