02 dezembro 2007

Manhã de domingo

Wallace Stevens

1.
Complacência de penhoar, café
E laranjas ao sol das onze horas,
Verde indolência de uma cacatua
No tapete – isso ajuda a dissipar
O santo silêncio do sacrifício.
Mas ela sonha, e sente aproximar-se,
Escura e lenta, a catástrofe antiga,
Como o descer da noite sobre as águas.
O odor das frutas, o brilho de asas verdes
Virão talvez da procissão dos mortos,
Que atravessa as águas, silenciosa.
Aquietou-se para dar passagem
A seus pés sonhadores sobre os mares
A Terra Santa de sangue e sepulcro.

2.
Por que legar aos mortos o que é seu?
O que é o divino, se se manifesta
Somente em sonhos, sombras silenciosas?
Por que não encontrar prazer no sol,
No odor das frutas, brilho de asas verdes,
Em qualquer outro bálsamo terreno,
Tão caro quanto o próprio paraíso?
É nela que o divino há de viver:
Paixões chuvosas, cismas de nevascas,
Negras solidões, gozos incontidos
Quando a floresta se abre em flor; lufadas
De emoção em noites frescas de outono;
Toda dor e delícia; gordos ramos
De verão, galhos desnudos de inverno.
Estes, os ritmos próprios de sua alma.

3.
Nas nuvens nasceu Jove, o não-humano,
Que mãe não aleitou, e em relva fresca
Com passos divinais jamais pisou.
Caminhou entre nós, um rei absorto,
Magnífico, portento entre os humildes,
Até que sangue humano e virginal
Mesclou-se ao céu, anseio tão intenso
Que o viram os mais humildes, numa estrela.
Quem sabe nosso sangue ainda virá
A ser do paraíso? Será a terra
O único paraíso possível?
O céu ainda será nosso aliado,
Na dor e no cansaço, quase igual
Em glória ao próprio amor imorredouro,
Não mais um muro indiferente e azul.

4.
Diz ela: “Quando os pássaros questionam
Com cantos matinais a realidade
Dos campos enevoados, sou feliz;
Mas quando vão-se embora, e vai-se junto
Toda a paisagem, onde o paraíso?”.
Não há nenhuma negra profecia,
Não há quimera sepulcral tampouco,
Nem ilha melodiosa, habitada
Por espíritos, nem doce eldorado
No sul, nem palmeira em longínqua névoa
De outeiro no céu, que perdure mais
Do que o verdor da primavera, mais
Que a lembrança de uma manhã com pássaros,
Ou um desejo de tarde de verão
Consumada em asas de andorinhas.

5.
Diz ela: “Ainda assim, sei que preciso
De alguma alegria imperecível”.
A morte é a mãe do belo, e só a morte
Satisfaz nossos sonhos e desejos.
Ainda que ela espalhe as folhas secas
Do aniquilamento a nossa frente
Pelo caminho da dor, pelos muitos
Caminhos onde exultou a vitória,
Ou onde o amor sussurrou sua ternura,
Faz o salgueiro estremecer ao sol,
Para moças que antes sonhavam na relva
E agora se levantam. Faz rapazes
Juntarem maçãs e ameixas novas
Num prato esquecido. As moças provam,
E apaixonadas andam sobre folhas.

6.
Não haverá morte no paraíso?
Não cairá a fruta madura? Os galhos
Hão de ficar para sempre carregados
Naquele céu perfeito e imutável,
E ao mesmo tempo semelhante ao mundo
Mortal, com rios que buscam sempre mares
Que nunca hão de tocar com lábios mudos?
De que servem as maças nessas margens?
Por que adoçar com ameixas aquelas praias?
Que triste, lá brilharem nossas cores,
Tecer-se a seda de nossas manhãs,
Soarem nossos violões insípidos!
A morte é a mãe de todo o belo, mística,
E no seu seio cálido sonhamos
A mãe terrena, insone, a nossa espera.

7.
Homens ágeis e alegres, de mãos dadas,
Numa manhã de verão, em plena orgia,
Hão de cantar em devoção ao sol,
Não como deus, mas como um deus seria,
Nu entre eles, uma fonte bárbara.
E seu canto há de ser paradisíaco,
Saído do seu sangue para o céu;
E em seu canto entrará, em cada voz,
O lago que deleita o seu senhor,
As árvores seráficas, e os montes
Por muito tempo a repetir sua música.
Conhecerão a sagrada irmandade
De homens mortais e estivais manhãs.
E de onde vieram, e para onde irão,
O orvalho em seu pés indicará.

8.
Ela ouve, nas águas silenciosas,
Uma voz gritar: “O Santo Sepulcro
Não é alpendre onde repousem espíritos,
É o túmulo onde jazeu Jesus”.
Vivemos nesse velho caos de sol,
Ou velha servidão de noite e dia,
Ou solidão de ilha, livre e solta,
De águas silenciosas e implacáveis.
Cervos andam pelos montes; codornas
Assobiam, espontâneas; e nas matas
Amoras silvestres amadurecem.
E, no isolamento do azul,
Ao entardecer, pombas revoam a esmo,
Fazendo ondulações ambíguas, vagas,
Em direção à sombra, com suas asas.

Fonte: Stevens, W. 1987.
Poemas. SP, Companhia das Letras. Poema originalmente publicado em 1923.

1 Comentários:

Blogger Fábio Romeiro Gullo disse...

Mto obrigado por disponibilizar esta tradução do mais famoso poema de Stevens. Estou lendo uma análise q H. Bloom faz do poema em inglês, e embora a melopéia seja mais bela e mais digerível em inglês, as imagens e ideias do poema, mto sutis, são melhor depreendidas na língua nativa do leitor.

8/10/10 13:28  

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