14 janeiro 2008

Epitáfio

Nuno Júdice

Morreram da epidemia, os melhores: a uns,
levou-os a peste; a outros, a gripe a que
chamaram pneumónica; e houve os da
doença de S. Vito; os da lepra, os da
tísica, galopante ou não. Isto, quando
não davam um tiro na cabeça, não se
enforcavam num candeeiro, não se deitavam
ao rio. Houve ainda os que deixaram
de escrever; os que beberam até perder
o juízo; os que, pura e simplesmente,
desistiram sem nada explicar. Como
se a vida dependesse de tão pouco –
linhas rabiscadas em papéis baratos,
frases que podiam ou não rimar,
pensamentos... que poderiam ter
guardado para eles próprios. No
entanto, quando os leio, percebo o seu
desespero. A beleza não aparece
todos os dias à vista do homem;
a perfeição nem sempre parece
uma coisa deste mundo. Sim:
subo as escadas até ao fim,
de onde se vê a cidade, embora
o tempo esteja de tempestade. O
que se passa, neste instante, sob
aqueles tectos? Que epidemia, mais
subtil, prende ao chão os que,
ainda há pouco, sonhavam com o voo?

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1994.

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