28 abril 2008

Diagnóstico

Rui Knopfli

E aqui à sombra de meus dias
apodreço
na consumpção de ocultas
corruptas brasas.
No que queria e afinal não sou,
feneço.
Remotos, discordantes sons
raspam a vidraça.
Do sol raios não me descem ao fundo
dos olhos;
quebram-se na álgida refracção
dos gelos em que mergulho.
Brutais, ululantes, pavorosos sexos de mulher,
hiantes, gritam translúcidas chamas
no roxo manto dum Cristo de memória.
Fantasmas de vivos – não gnomos,
não duendes – sentam-se à minha
beira como aparelhos de raios X.
Pesado, lento, grosso, adocicado,
nojento sangue escorre-me
da sulfurosa boca.
Na decomposição,
total, completo, sou vivo.
Amarga-me, não ela
mas as consoladoras, desejáveis
flores
em que nunca rebentará.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1959.

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