01 agosto 2008

O salto da morte

Felippe D’Oliveira

A melodia múrmura
à porta do rancho
derrama uma alma
na paisagem viva
e a paisagem viva
inspira e expira
o ar fino da noite
pelos brônquios sonoros
da gaita monótona.

Os sapos calaram
e escutam, pensando
que a Mãe-d’Água dos sapos
está cantando perto
no brejo da charneca
entre os nenúfares.

Os bois sonolentos
descerrando lentos
os olhos úmidos
olham o campo longo
batido de luar
e pasmam de já ser aurora
pois luz melodiosa
eles entendem o dia só
quando o sol acorda
à voz dos pássaros
adormecidos.

A gaita monótona
insufla um hálito
de pulmão humano
no ar que trescala
na noite clara.

As frondes das árvores
movem o gesto
que marca compasso
como cabeças
atentas à orquestra,
As duas janelas
ladeando a porta
do rancho calmo
têm a doçura
dos olhos ingênuos
e sorriem
no ouro das candeias
que enchem de ouro fluido
a sala caiada.
E da trepadeira
posta em mantilha
sobre o teto de sapé
sobe o cheiro morno
do jasmim branco
que a música faz mais tépido
como um perfume sobre a pele.

A gaita monótona
alonga o perfume
na noite oblonga
e a claridade unânime
é luar e perfume
dissolvidos na música.

Súbito, um acorde
mais cheio, mais forte,
soprado em ofego
ressoa e se cala
até o fim do espaço,
no fim da paisagem.

Só o luar vazio persiste
sobre a terra estática...

E, dentro do luar,
pênsil dos astros,
fica oscilando,
compassado,
o silêncio noturno,
como um trapézio balançado
de onde rolou
para morrer
no tombo mágico
o saltimbanco atônito.

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema originalmente publicado em 1927.

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