17 setembro 2008

A lata de lixo

Murilo Mendes

A lata de lixo, outrora sórdido caixote (salvo para os vira-latas) transformou-se hoje num elegante objeto de plástico, em geral azul, perfeita esfera. Embarcaríamos até nessa aeronave!

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Manuel Bandeira viu certa vez um homem fuçando uma lata de lixo num pátio. Com esse material mínimo escreveu uma poesia muito admirada também num determinado setor das universidades de Roma e de Pisa. Roma! Os palácios vermelhos de Roma! Pisa! A lâmpada de Galileu! As romanas! As pisanas!

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Não é fácil ver-se o lixeiro. Trata-se de um personagem kafkeano, quase marciano. Deixa-se a lata do lado de fora, e ele, pisando com pés de lã, invisível aos olhos mortais, discreto, obediente, esvazia a esfera azul.

Só uma vez tive ocasião de encontrar um lixeiro, aqui em Roma, nas vésperas do Natal. Bateu à minha porta, subvestido (subnutrido?), sorridente, anunciando: Eu sou o lixeiro.

Respondo logo, também sorridente: Bom dia. Como se chama o senhor?

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Não tolero ignorar os nomes daqueles com quem trato. A função adâmica do poeta move-o a nomear as coisas e as pessoas. Não só atribuir um nome aos que ainda não o têm, mas informar-se dos que já o têm. De resto um homem, antes de ser lixeiro, garçom ou motorista é uma pessoa, quero saber seu nome.

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Eu me chamo, e todos os outros me chamam, Murilo. Dum ponto de vista puramente eufônico e visual preferiria chamar-me por exemplo Goya, Velásquez ou Zurbarán.

Malandro e hipócrita sou! Bem vejo que não se trata de um ponto de vista puramente eufônico e visual, trata-se de atenção à hierarquia dos valores; mesmo contrariando Ortega y Gasset, mesmo reconhecendo o interesse dum certo lado da obra de Murilo, o lado mais realista, não o situo no plano dos outros três pintores.

Vaidade das vaidades: Tudo é vaidade, até mesmo a de querer mudar de nome para se elevar, até mesmo a de embarcar numa astronave, percorrer o cosmo que um dia próximo ou remoto, não sei, será despejado como lixo; e um mundo novo se levantará sobre latas, máquinas de plástico ou não, sobre as ruínas dos textos, as ruínas das ruínas: o novo céu, a nova terra, previstos e anunciados pelo transformador e reformador de todas as coisas visíveis e invisíveis, o Ser dialético por excelência.

Fonte: Alvarez, P. R. & Cristofaro, V. F., orgs. 2005. Microlições de coisas. Juiz de Fora, Centro de Estudos Murilo Mendes.

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