31 dezembro 2008

As auroras boreais do outono

Wallace Stevens

1.
Aqui vive a serpente, a incorpórea.
A cabeça é de ar. Sob sua ponta, à noite,
Em todo o céu seu olhar se fixa em nós.

Ou será isto outro sair do ovo,
Outra imagem no fim da caverna, outro
Incorpóreo para a pele descartada?

Aqui vive a serpente. Este é seu ninho,
Esses campos, serras, essas distâncias tintas,
Pinheiros acima e ao longo do mar.

A forma aspirando o informe, pele
Cintilando o desejo de sumir,
Corpo de cobra cintilando sem a pele.

Aqui emerge a altura e sua base
Talvez as luzes por fim atinjam um pólo
No meio da meia-noite, e lá achem a serpente,

Em outro ninho, senhora do labirinto
De corpo e ar e forma e imagem, implacável
Proprietária da felicidade.

Eis seu veneno: não acreditarmos
Nem nisso. Suas meditações nas samambaias,
Quando mexeu-se um pouco para confirmar o sol,

Nos confirmou também. Vimos em sua cabeça,
Negra gota na pedra, o bicho pintado,
Capim movente, o índio em sua trilha.

2.
Adeus a uma idéia... Uma cabana,
Deserta, numa praia, É branca,
Como se por costuma, ou conforme

Um tema ancestral, ou conseqüência
De um curso infinito. As flores na parede
São brancas, algo secas; elas lembram,

Tentam lembrar, um branco diferente,
Outra coisa, no ano passado, ou antes,
Não o branco de uma tarde velha, mais vivo

Ou mais desmaiado, de nuvem de inverno
Ou céu de inverno, de horizonte a horizonte.
O vento joga areia no assoalho

Aqui, ser invisível é ser branco, é ser
De um todo branco, realização
Do exercício de um extremista...

Muda a estação. Um vento esfria a praia.
As linhas longas se alongam, se esvaziam,
A escuridão aumenta mas não cai,

E o branco das paredes esmaece.
O homem pára na areia, oco.
Vê como o norte intensifica a mudança,

Com brilhos gélidos, cortinas verde-azuis,
Grandes golfadas de luz, verde polar,
Cor de gelo e fogo e solidão.

3.
Adeus a uma idéia... O rosto da mãe,
O objetivo do poema, enche a sala.
Aqui estão juntos, aqui o frio não entra,

Não há presciência de sonhos que surjam.
A casa é a tarde, semidissolvida.
Só resta a metade que nunca lhes pertence,

Ainda estrelada. É a mãe que lhes pertence,
Que a paz presente empresta transparência,
Mais suaviza o que suave pode ser.

Mas também ela se dissolve, se destrói.
Dá transparência. Porém envelheceu.
O colar é um entalhe, não beijo;

As mãos macias, movimento, e não toque.
A casa vai cair e os livros vão arder.
Estão em paz num refúgio mental

E a casa é mental, eles e o tempo,
Todos juntos. A noite boreal
Será como geada ao vir a eles

E à mãe que adormece, e eles dão boa-noite,
Boa noite. No andar de cima, as janelas,
E não os quartos, ficarão acesos.

Um vento vai espalhar sua grandeza,
Bater à porta feito coronhada. O vento
Vai ordená-los com som invencível.

4.
Adeus a uma idéia... As negações,
Cancelamentos, nunca são finais. O pai,
Nalgum espaço de árida contemplação,

Como quem é forte nas matas do olhar,
Diz não ao não e sim ao sim. Diz sim
Ao não; e, ao dizer sim, diz adeus.

Ele mede a velocidade das mudanças.
Salta de céu a céu bem mais depressa
Que anjos maus de céu a inferno em chamas.

Porém, sentado, agora, em verde dia,
Adota a rapidez do espaço e a faz voar
De nuvem a azul, de azul a limpo intenso

Em vôos de olho e ouvido, olho mais alto
E ouvido o mais rasteiro e fundo, que discerne,
A noite, as coisas que acompanham, até ouvir

Prelúdios seus e sobrenaturais,
No instante em que o olho angélico define
Seus atores que entram, com suas máscaras.

Senhor, senhor ao pé do fogo e no entanto
No espaço imóvel e no entanto origem
Do movimento, luminosa mais e mais,

Profunda, e no entanto rei e coroa,
Olha este trono presente. Que mascarados
Hão de fazê-lo coro para o vento nu?

5.
A mãe convida a humanidade a sua casa
E mesa. O pai chama contadores de contos
E músicos que calam em cismas sobre os contos;

Chamas negras para danças entre as crianças,
Dançarinas de um maduro curioso
No desenho do amadurecer da dança.

Os músicos lhes tangem tons insidiosos,
Unhando a melopéia de seus instrumentos.
As crianças riem em tempo estridente.

O pai invoca préstitos do ar,
Cenas de teatro, panoramas, praticáveis,
Cortinas ingênuas que simulam sono.

Soam os músicos o poema instintivo.
O pai chama seus rebanhos dispersos,
De língua bárbara, babada, em bífida

Arfagem, que atendem a sua trompa.
Eis Chatillon, então, ou o que quiseres.
Estamos no tumulto de um festival.

Que festival? Essa turba barulhenta?
Esses irmãos hospitaleiros e hóspedes
Animalescos? Esses músicos trôpegos

Tateando uma tragédia que consiste
Em não ter falas a dizer? Não há peça. Ou:
O espetáculo é só estar aqui.

6.
É um teatro flutuando entre as nuvens,
É nuvem, embora pedra enevoada
E morros fluidos como água, onda a onda,

Ondas de luz. É de nuvem transformada
Em nuvem retransformada, ociosa,
Como estação que muda as cores sem razão

Senão o puro prazer de transformar,
Qual luz que do amarelo gera ouro, e o ouro
Reduz a opalino e fogo alegre,

Esparramado por amor ao esplendor
E ao prazer solene do espaço esplêndido.
Ociosa, a nuvem assume formas malpensadas.

O teatro se enche de aves a voar,
Ângulos loucos, qual fumaça de vulcão,
Olhos de palma, e some, teia em corredor

Ou pórtico imenso. Um capitólio, talvez,
Está surgindo, ou acaba de cair.
É preciso adiar o desenlace...

Isso não é nada até conter-se num só homem,
Até a coisa nomeada ser sem-nome
E destruída. Ele abre a porta de sua casa

Em chamas. Sábio de uma vela só,
Vê um brilho ártico sobre a estrutura
De tudo que ele é. E sente medo.

7.
Haverá uma imaginação entronada
Tão implacável quanto é benévola,
Justa e injusta, que pare em pleno verão

Para imaginar o inverno? Quando as folhas caem,
Será que ocupa o seu lugar ao norte e dobra-se,
Caprissaltante, cristalada e luminosa,

No mais alto da noite? E esses céus a adornam
E proclamam, a branca criadora do negro,
Cravejada de extinções, talvez de planetas,

Até da terra, da visão, na neve,
Salvo o que exige a sua majestade,
No céu, coroa e cabala diamantina?

Pula através de nós, de todos nossos céus,
Extingue nossos planetas, um por um,
Salvo a coroa e mística cabala. Mas

Saltar não ousa, a esmo, em sua própria treva.
Tem de trocar destino por capricho.
Daí sua negra tragédia, sua estela

E forma e busca melancólica daquilo
Que há de, e pode, ser fim, enfim,
Talvez um comentário cínico ao luar.

8.
Sempre pode haver tempo de inocência,
Num lugar. Ou, se tempo não houver,
Nem por não ser coisa de tempo nem lugar,

Existente como idéia apenas, consciência
Que repele o desastre, é menos real.
Para filósofo o mais velho e gélido,

Há ou pode haver tempo de inocência
Puro princípio, cuja essência é seu fim,
O ser, e no entanto não ser, uma coisa

Que apela à piedade do piedoso,
Como livro ao entardecer belo mas falso,
Como livro ao despertar belo e vero.

E como coisa etérea que existe
Quase como predicado. Porém
Existe, é visível, é e é.

Assim, estas luzes não são magia da luz,
Fala de nuvem, porém inocência,
Uma inocência da terra, não signo falso

Nem símbolo de mal. Dela provamos,
Crianças, nos deitamos nessa santidade,
Como quem, acordado, jaz na paz do sono,

Como se a mãe cantasse, inocente, no escuro
Do quarto, e num acordeão baixinho
Criasse o tempo e o espaço em que nós respiramos...

9.
E no outro cada um pensava – no idioma
Do trabalho, de uma terra inocente,
Não do enigma do sonho culposo.

Como dinamarqueses na Dinamarca,
Compatriotas sãos, que bem nos conhecíamos,
Para nós o extravagante era um dia útil,

Mais estranho que domingo. Concordávamos
Em tudo: éramos irmãos, num lar
No qual o ser irmão era alimento,

Como quem come um favo decoroso. O drama
Que vivemos – Nos melávamos de sono.
A sensação de atividade do destino –

O encontro marcado, quando ela vinha só,
Por ela vir virava liberdade a dois,
Isolamento que só dois podem gozar.

Nos acharão na primavera enforcados
Nas árvores? De que desastre isto é iminência:
Galhos nus, vento cortante como sal?

Vestem as estrelas seus cintos cintilantes.
Jogam nos ombros mantos que reluzem
Como último ornamento de uma grande sombra.

Talvez venha amanhã na palavra mais simples,
Quase como parte da inocência, quase isso,
Quase parte a mais terna e verdadeira.

10.
Gente infeliz num mundo feliz –
Rabino, lê as fases dessa diferença.
Gente infeliz num mundo infeliz –

Aqui há excesso de espelhos para a dor.
Gente feliz num mundo infeliz –
Não pode ser. Aqui não há nada que deleite

A língua expressiva, o dente inquisidor.
Gente feliz num mundo feliz –
Bufão! Um baile, uma ópera, um bar.

Voltemos ao lugar de onde partimos:
Gente infeliz num mundo feliz.
Agora soleniza as sílabas solertes.

Lê para a congregação hoje e amanhã,
Esse exagero, essa maquinação
Do espectro das esferas, maquinando

O equilíbrio a fim de maquinar um todo,
Gênio vital, que nunca falha, e realiza
Suas meditações, quer grandes, quer pequenas.

Nelas medita, infeliz, um todo,
O pleno do fado e o pleno da fortuna,
Como quem vive as vidas todas, para saber,

Em mansão megera, não silente éden,
Na arenga do vento, neste céu em chamas
Qual palha de verão, no âmago do inverno.

Fonte: Stevens, W. 1987. Poemas. SP, Companhia das Letras. Poema originalmente publicado em 1950.

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