21 dezembro 2008

O Guesa

Sousândrade

Canto 3

As balseiras na luz resplandeciam –
Oh! que formoso dia de verão!
Dragão dos mares, – na asa lhe rugiam
Vagas, no bojo indômito vulcão!
Sombrio, no convés, o Guesa errante
De um para outro lado passeava
Mudo, inquieto, rápido, inconstante,
E em desalinho o manto que trajava.
A fronte mais que nunca aflita, branca
E pálida, os cabelos em desordem,
Qual o que sonhos alta noite espanca,
“Acordem, olhos meus, dizia, acordem!”
E de través, espavorido olhando
Com olhos chamejantes da loucura,
Propendia p’ra as bordas, se alegrando
Ante a espuma que rindo-se murmura:
Sorrindo, qual quem da onda cristalina
Pressentia surgirem louras filhas;
Fitando olhos no Sol, que já s’inclina,
E rindo, rindo ao perpassar das ilhas.
– Está ele assombrado?... Porém, certo,
Dentro lhe idéia vária tumultua:
Fala de aparições que há no deserto,
Sobre as lagoas ao clarão da lua.

Imagens do ar, suaves, flutuantes,
Ou deliradas, do alcantil sonoro,
Cria nossa alma; imagens arrogantes,
Ou qual aquela, que há de riso e choro:
Uma imagem fatal (para o ocidente,
Para os campos formosos d’áureas gemas,
O sol, cingida a fronte de diademas,
Índio e belo atravessa lentamente):
Estrela de carvão, astro apagado
Prende-se mal seguro, vivo e cego,
Na abóbada dos céus, – negro morcego
Estende as asas no ar equilibrado.
E estende, abrindo-as, asas longas, densas
(Alvar boquinha, os olhos de negrores,
Lumes de Sátan e os que são traidores,
De Lusbel morte, já sem luz, sem crenças),
Vibra, acelera a vibração de açoite
Da asa torva com que fustiga os ares;
Qual a palpitação vasta da noite,
Oscila a esfera, vanzeando os mares.

Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema – composto de 13 cantos, dos quais o trecho acima corresponde ao terceiro – originalmente publicado entre 1874 e 1877.

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