17 maio 2009

O eremita

Guillaume Apollinaire

Um eremita descalço perto de um crânio embranquecido
Gritou: Eu vos amaldiçôo martírios e aflições
Tentações demais apesar de mim me acariciam
Tentações de lua e de disputas de palavras

Estrelas demais fogem quando eu rezo
Ó chefe de morta ó velho marfim Órbitas buracos
Das narinas roídas Tenho fome Meus gritos estão roucos
Eis para o meu jejum um pedaço de queijo

Ó Senhor açoite as nuvens do pôr-do-sol
Que estendem no céu tão belos cus rosas
E é a noite as flores do dia já se fecham
E os camundongos na sombra encantam o assoalho

Os humanos sabem tantos jogos o amor
O amor jogo dos umbigos ou jogo do ganso
O jogo do número ilusório dos dedos
Senhor faça Senhor que um dia eu me apaixone

Espero aquela que me estenderá seus dedos miúdos
Quantos sinais brancos nas unhas as preguiças
As mentiras no entanto espero que as erga
Suas mãos enamoradas diante de mim a desconhecida

Senhor o que te fiz Veja Sou unicórnio
No entanto apesar de seu belo medo concupiscente
Feito uma criança querida meu sexo é inocente
De estar angustiado sozinho e erguido como um marco

Senhor o Cristo está nu Joguem joguem sobre ele
A túnica sem costura apaguem os ardores
Ao poço vão afogar-se tantas batidas de horas
Quando em intervalos iguais caem as gotas de chuva

Velei trinta noites sob os louros rosas
Suaste sangue Cristo em Getsêmani
Crucificado responda Diga não Eu o nego
Pois esperei demais em vão os estigmas

Eu escutava ajoelhado apaixonarem-se as batidas
Do coração o sangue rodava sempre em suas artérias
Que são velhos corais ou são cogumelos
E a minha aorta era avarenta perdidamente

Uma gota caiu Suor E a sua cor
Luz O sangue tão vermelho e eu ri dos danados
Depois enfim entendi que eu sangrava do nariz
Devido aos perfumes violentos de minhas flores

E ri do velho anjo que não apareceu
De vôo muito indolente me dar um belo cálice
Ri da asa cinza e tiro meu cilício
Costurado de crinas sedosas por cruéis operárias

Vertuchou Riotant das vaginas das papisas
Santas sem peitos irei para as cidades
E lá talvez morrer pela minha virgindade
Entre as mãos as peles as palavras e as promessas

Apesar dos ventos azuis eu me ergo divino
Como um raio de lua adorado pelo mar
Em vão eu supliquei todos os santos fora do calendário
Nenhum me consagrou meus doces pães sem fermento

E eu ando Eu fujo à noite Lilith uiva
E clama em vão e vejo grandes olhos
Abrirem-se tragicamente ó noite vejo teus céus
Estrelarem-se calmamente de esplêndidas pílulas

Um esqueleto de rainha inocente está enforcado
A um longo fio de estrela em desespero severo
À noite os bosques são negros e morre a esperança verde
Quando morre o dia com um grito inesperado

E eu ando eu fujo ó dia a emoção da alvorada
Fechou o olhar fixo e doce de velho rubis
Das corujas e eis o olhar das ovelhas
E das porcas com tetas rosas como orelhas

Corvos de asas abertas igual a um til fazem
Uma sombra vã aos pobres campos de centeio maduro
Perto dos burgos onde os casebres são impuros
Por terem corujas mortas pregadas em seu teto

Meus quilômetros longos Minhas tristezas inteiras
Os esqueletos de dedos terminando os pinheiros
Perderam minha estrada e meus ombros de nenê
Muitas vezes e dormi no chão dos pinheirais

Enfim Ó noite pasmada No fim de meus caminhos
A cidade me apareceu muito grave ao som dos sinos
E minha luxúria morre agora que me aproximo
Entrando abençoei as multidões das duas mãos

Cidade eu ri de teus palácios como trufas
Brancas no chão cavado de clareiras azuis
Ora meus desejos vão embora todos em fila
Minha enxaqueca piedosa vestiu seu escapulário

Pois todas vieram confessar-me os seus pecados
E Senhor sou santo pelo voto das amantes
Zelotide e Lorie Luisa e Diamante
Disseram Podes saber ó tu o espantado

Eremita absolve nossas culpas nunca veniais
Ó tu o puro e o arrependido que nós amamos
Saiba nossos corações esconde os jogos que amamos
E nossos beijos quintessência como mel

E eu absolvo as confissões púrpuras como seu sangue
Das poetas nuas das fadas das fornicadoras
Nenhum pobre desejo enche o meu peito
Quando vejo à noite os casais se abraçando

Pois não quero mais nada a não ser deixar fechar
Meus olhos casal cansado no jardim ofegante
Cheio da agonia pomposa das groselheiras sangrentas
E da santa crueldade da flor da paixão

Fonte: Apollinaire. 2005. Álcoois e outros poemas. SP, Martin Claret. Poema – dedicado ‘A Félix Fénéon’ – publicado em livro em 1913.

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