30 outubro 2009

Maré da vida

Lyall Watson

[Epílogo]
Tenho consciência, ao avizinhar-me do fim, de não haver conseguido, às vezes, encontrar as palavras certas para expressar alguma coisa que poderia, de um modo ou de outro, revelar-se inefável. Com o seu peso, as palavras tendem a cair como [aves de rapina] sobre idéias delicadas, levando-as consigo antes que elas tenham a oportunidade de atingir a fruição. Vi-me obrigado, por exemplo, em várias conjunturas críticas, a retomar a metáfora da maré.

Julian Jaynes não veria nisso razão para pedir escusas. “Compreender uma coisa é chegar a uma metáfora que a explique substituindo-a por algo que nos é mais familiar. E o sentido de familiaridade é o sentido da compreensão.” Acredita ele que no uso imaginativo da metáfora está o próprio fundamento da linguagem, e que esse emprego da linguagem fez de nós seres conscientes. Como [biólogo], devo inverter a cadeia causal e dizer que nunca teríamos sido capazes de fazer uma boa metáfora se já não fôssemos manifestamente conscientes. Entretanto, chegamos, no fim, a uma conclusão semelhante, que é esta: “a mente é um análogo do que se chama o mundo real.”
[...]

Fonte: Watson, L. 1980. Maré da vida. RJ, Difel.

28 outubro 2009

Deixai entrar a Morte

Florbela Espanca

Deixai entrar a Morte, a Iluminada,
A que vem para mim, pra me levar.
Abri todas as portas par em par
Como asas a bater em revoada.

Quem sou eu neste mundo?A deserdada,
A que prendeu nas mãos todo o luar,
A vida inteira, o sonho, a terra, o mar
E que, ao abri-las, não encontrou nada!

Ó Mãe! Ó minha Mãe, pra que nasceste?
Entre agonias e em dores tamanhas
Pra que foi, dize lá, que me trouxeste

Dentro de ti?... Pra que eu tivesse sido
Somente o fruto amargo das entranhas
Dum lírio que em má hora foi nascido!...

Fonte: Espanca, F. 1996. Poemas de Florbela Espanca. SP, Martins Fontes. Poema publicado em livro em 1931.

26 outubro 2009

Danae


Corregio [Antonio Allegri] (1489-1534). Danae. 1531.

Fonte da foto: Wikipedia.

24 outubro 2009

Testando a obediência

Stanley Milgram

Com freqüência, quando há uma idéia, ela tem vários pontos de origem. Ela não se desenvolve necessariamente em forma linear daquilo que se havia feito anteriormente. Eu estava trabalhando para Asch, em Princeton, Nova Jersey, em 1959 e 1960. Estava pensando no seu experimento sobre pressão do grupo. Uma das críticas que haviam sido feitas aos seus experimentos é que eles tinham uma falha quanto à consistência, porque, afinal, um experimento em que as pessoas fazem julgamento a respeito de linhas tem realmente um conteúdo manifestamente trivial. Assim, a pergunta que me fiz foi: Como isso pode ser transformado num experimento mais significativo do ponto de vista humano? E pareceu-me que, se ao invés de um grupo exercer pressão sobre julgamento a respeito de linhas, ele pudesse levar a alguma coisa mais significativa vinda da pessoa, então isto traduziria mais um passo em direção a uma maior significância dada ao comportamento induzido pelo grupo. Poderia um grupo, eu me perguntava, induzir uma pessoa a agir com rigor contra outra pessoa? E, uma vez que a minha inclinação natural é chegar até a base das coisas, vislumbrei uma situação muito semelhante à do experimento de Asch, no qual haveria um grupo de aliados e um sujeito ingênuo e, ao invés de confrontar as linhas sobre uma cartela, cada um deles teria um gerador de choque. Em outras palavras, transformei o experimento de Asch em outro, no qual o grupo administraria choques de intensidade cada vez maior a uma pessoa, e a pergunta seria: até que ponto o indivíduo continuaria acompanhando o grupo? Esse não é, todavia, o experimento sobre obediência, mas é um passo naquela direção. Depois, eu queria saber como é que seria organizado realmente. O que se constituiria em controle experimental nessa situação? No experimento de Asch há um controle – a proporção de julgamentos corretos que a pessoa faz na ausência da pressão do grupo. Assim, eu disse a mim mesmo: Bem, creio que eu teria de estudar uma pessoa nessa situação, na ausência de qualquer pressão do grupo. Mas então, como se induziria a pessoa a aumentar os choques? Quero dizer, qual seria a força que induziria alguém a aumentar os choques? E então ocorreu-me o pensamento de que o experimentador teria que dizer à pessoa que aplicasse choques cada vez mais fortes. Exatamente até onde uma pessoa vai, quando um experimentador a instrui a dar choques cada vez mais fortes? Imediatamente, soube que aquele era o problema que eu deveria investigar. Foi um momento muito importante para mim, porque compreendi que embora fosse uma questão muito simples, ela admitiria a medição, a investigação precisa. Poder-se-ia ver as variáveis a serem estudadas, sendo que a medida dependente seria até onde a pessoa chegaria na administração dos choques.

Fonte: Evans, R. I. 1979 [1976]. Construtores da psicologia. SP, Summus & Edusp.

22 outubro 2009

A invenção do amor

Daniel Filipe

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo

É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos Decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade

É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja demasiado tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas Sobretudo
protejam as crianças da contaminação
Uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial

o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas

Procurem os guardas dos antigos universos concentracionários
precisamos da sua experiência onde quer que se escondam ao temor do castigo
Que todos estejam a postos Vigilância é a palavra de ordem
Atenção ao homem e à mulher de que se fala nos cartazes
À mais ligeira dúvida não hesitem denunciem
Telefonem à policia ao comissariado ao Governo Civil
não precisam de dar o nome e a morada
e garante-se que nenhuma perseguição será movida
nos casos em que a denúncia venha a verificar-se falsa
Organizem em cada bairro em cada rua em cada prédio
comissões de vigilância Está em jogo a cidade
o país a civilização do ocidente
Esse homem e essa mulher têm de ser presos
mesmo que para isso tenhamos de recorrer às medidas mais drásticas

Por decisão governamental estão suspensas as liberdades individuais
a inviolabilidade do domicílio o habeas corpus o sigilo da correspondência
Em qualquer parte da cidade um homem e uma mulher amam-se ilegalmente
espreitam a rua pelo intervalo das persianas
beijam-se soluçam baixo e enfrentam a hostilidade nocturna
É preciso encontrá-los É indispensável descobri-los
Escutem cuidadosamente a todas as portas antes de bater

É possível que cantem
Mas defendam-se de entender a sua voz Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
Lhe lembravam a infância Campos verdes floridos
Água simples correndo A brisa nas montanhas
Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo assim desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta

Impõe-se sistematizar as buscas Não vale a pena procurá-los
nos campos de futebol no silêncio das igrejas nas boites com orquestra privativa
Não estarão nunca aí Procurem-nos nas ruas suburbanas onde nada acontece
A identificação é fácil Onde estiverem estará também pousado sobre a porta
um pássaro desconhecido e admirável
ou florirá na soleira a mancha vegetal de uma flor luminosa
Será então aí Engatilhem as armas invadam a casa disparem à queima roupa
Um tiro no coração de cada um Vê-los-ão possivelmente
dissolver-se no ar Mas estará completo o esconjuro
e podereis voltar alegremente para junto dos filhos da mulher

Mas ai de vós se sentirdes de súbito o desejo de deixar correr o pranto
Quer dizer que fostes contagiados Que estais também perdidos para nós
É preciso nesse caso ter coragem para desfechar na fronte o tiro indispensável
Não há outra saída A cidade o exige

Se um homem de repente interromper as pesquisas
e perguntar quem é e o que faz ali de armas na mão
já sabeis o que tendes a fazer Matai-o Amigo irmão que seja
matai-o Mesmo que tenha comido à vossa mesa crescido a
vosso lado matai-o Talvez que ao enquadrá-los na mira da espingarda
os seus olhos vos fitem com sobre-humana náusea
e deslizem depois numa tristeza liquida
até o fim da noite Evitai o apelo a prece derradeira
um só golpe mortal misericordioso basta
para impor o silêncio secreto e inviolável

Procurem a mulher o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua

No inquérito oficial atónito afirmou
que o homem e a mulher tinham estrelas na fronte
e caminhavam envoltos numa cortina de música
com gestos naturais alheios Crê-se
que a situação vai atingir o climax
e a polícia poderá cumprir o seu dever
Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
A voz do locutor definitiva nítida
Manchetes cor de sangue no rosto dos jornais

É PRECISO ENCONTRÁ-LOS
ANTES QUE SEJA TARDE

Já não basta o silêncio a espera conivente o medo inexplicado
a vida igual a sempre conversas de negócios
esperanças de emprego contrabando de drogas aluguer de automóveis
Já não basta ficar frente ao copo vazio no café povoado
ou marinheiro em terra afogar a distância
no corpo sem mistério da prostituta anónima
Algures no labirinto da cidade um homem e uma mulher
amam-se espreitam a rua pelo intervalo das persianas
constroem com urgência um universo do amor
E é preciso encontrá-los E é preciso encontrá-los

Importa perguntar em que rua se escondem
em que lugar oculto permanecem resistem
sonham meses futuros continentes à espera
Em que sombra se apagam em que suave e cúmplice
abrigo fraternal deixam correr o tempo
de sentidos cerrados ao estrépito das armas
Que mãos desconhecidas apertam as suas
no silêncio pressago da cidade inimiga

Onde quer que desfraldem o cântico sereno
rasgam densos limites entre o dia e a noite
E é preciso ir mais longe
destruir para sempre o pecado da infância
erguer muros de prisão em círculos fechados
impor a violência a tirania o ódio

Entanto das esquinas escorre em letras enormes
a denúncia total do homem da mulher
que no bar em penumbra numa tarde de chuva
inventaram o amor com carácter de urgência

COMUNICADO GOVERNAMENTAL À IMPRENSA

Por diversas razões sabe-se que não deixaram a cidade
o nosso sistema policial é óptimo estão vigiadas todas as saídas
encerramos o aeroporto patrulhamos os cais
há inspectores disfarçados em todas as gares de caminhos de ferro

É na cidade que é preciso procurá-los
incansavelmente sem desfalecimentos
Uma tarefa para um milhão de habitantes
todos são necessários
todos são necessários
Não sem preocupem com os gastos a Assembléia votou um crédito especial
e o ministro das Finanças
tem já prontas as bases de um novo imposto de Salvação Pública

Depois das seis da tarde é proibido circular
Avisa-se a população de que as forças da ordem
atirarão sem prevenir sobre quem quer que seja
depois daquela hora Esta madrugada por exemplo
uma patrulha da Guarda matou no Cais da Areia
um marinheiro grego que regressava ao seu navio

Quando chegaram junto dele acenou aos soldados
disse qualquer coisa em voz baixa e fechou os olhos e morreu
Tinha trinta anos e uma família à espera numa aldeia do Peloponeso
O cônsul tomou conhecimento da ocorrência e aceitou as desculpas do Governo pelo engano cometido
Afinal tratava-se apenas de um marinheiro qualquer
Todos compreenderam que não era caso para um protesto diplomático
e depois o homem e a mulher que a policia procura
representam um perigo para nós e para a Grécia
para todos os países do hemisfério ocidental
Valem bem o sacrifício de um marinheiro anónimo
que regressava ao seu navio depois da hora estabelecida
sujo insignificante e porventura bêbado

SEGUE-SE UM PROGRAMA DE MÚSICA DE DANÇA

Divirtam-se atordoem-se mas não esqueçam o homem e a mulher
escondidos em qualquer parte da cidade
Repete-se é indispensável encontrá-los
Um grupo de cidadãos de relevo ofereceu uma importante recompensa
destinada a quem prestar informações que levem à captura do casal fugitivo

Apela-se para o civismo de todos os habitantes
A questão está posta É preciso resolvê-la
para que a vida reentre na normalidade habitual

Investigamos nos arquivos Nada consta
Era um homem como qualquer outro
com um emprego de trinta e oito horas semanais
cinema aos sábados à noite
domingos sem programa
e gosto pelos livros de ficção cientifica
Os vizinhos nunca notaram nada de especial
vinha cedo para casa
não tinha televisão,
deitava-se sobre a cama logo após o jantar
e adormecia sem esforço
Não voltou ao emprego o quarto está fechado
deixou em meio as “Crónicas marcianas”
perdeu-se precipitadamente no labirinto da cidade
à saída do hotel numa tarde de chuva

O pouco que se sabe da mulher autoriza-nos a crer
que se trata de uma rapariga até aqui vulgar
Nenhum sinal característico nenhum hábito digno de nota
Gostava de gatos dizem Mas mesmo isso não é certo
Trabalhava numa fábrica de têxteis como secretária da gerência
era bem paga e tinha semana inglesa
passava as férias na Costa da Caparica.

Ninguém lhe conhecia uma aventura
Em quatro anos de emprego só faltou uma vez
quando o pai sofreu um colapso cardíaco
Não pedia empréstimos na Caixa Usava saia e blusa
e um impermeável vermelho no dia em que desapareceu
Esperam por ela em casa: duas cartas de amigas
o último número de uma revista de modas
a boneca espanhola que lhe deram aos sete anos

Ficou provado que não se conheciam
Encontraram-se ocasionalmente num bar de hotel numa tarde de chuva
sorriram inventaram o amor com carácter de urgência
mergulharam cantando no coração da cidade

Importa descobri-los onde quer que se escondam
antes que seja demasiado tarde
e o amor como um rio inunde as alamedas
praças becos calçadas quebrando nas esquinas
Já não podem escapar Foi tudo calculado
com rigores matemáticos Estabeleceu-se o cerco
A policia e o exército estão a postos Prevê-se
para breve a captura do casal fugitivo
(Mas um grito de esperança inconsequente vem
do fundo da noite envolver a cidade
au bout du chagrin une fenêtre ouverte
une fenêtre eclairée)

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1961.

20 outubro 2009

Psicologia da ciência

Abraham Maslow

A ciência tem as suas origens nas necessidades de conhecer e compreender (ou explicar), isto é, nas necessidades cognitivas [...]. Noutro trabalho [...], resumi as várias provas que me levam a crer serem essas necessidades do tipo instintivo, constituindo, portanto, características que definem o homem (embora não só o homem) e a espécie. Nesse mesmo artigo, tentei fazer a diferença entre as atividades cognitivas investigadas pela ansiedade e as que são levadas a cabo sem medo ou contra o medo e que podem assim considerar-se como ‘saudáveis’. Quer dizer, os impulsos científicos são condicionados, quer pelo medo, quer pela coragem, e adquirem características diferentes em cada caso.

A curiosidade, a exploração, a manipulação, quando provocadas pelo medo ou pela ansiedade, aparecem como tendo por principal objetivo abafar a ansiedade. O que do ponto de vista de comportamento surge como interesse pela natureza do objeto que se estuda ou do domínio que se explora, pode ser sobretudo um esforço do organismo para ele próprio se acalmar e para fazer baixar a tensão, vigilância e apreensão. O objeto desconhecido é nesse caso acima de tudo um gerador de ansiedade e o ato de o examinar e experimentar é, em primeiro lugar e principalmente, uma esterilização do objeto, transformando-o em algo de que não há que ter medo. Alguns organismos, uma vez sossegados, podem então passar, sem mais, a examinar o objeto por ele próprio, com uma curiosidade pela realidade que existe independente, por si só. Outros organismos, porém, podem perder todo o interesse no objeto uma vez este esterilizado, tornado familiar [...], e deixando de provocar o medo. Isto é, a familiarização pode provocar desatenção e aborrecimento.
[...]

Fonte: Deus, J. D., org. 1979. A crítica da ciência, 2ª edição. RJ, Zahar. Texto originalmente publicado em 1966.

18 outubro 2009

O caminho do morro

Alberto de Oliveira

Guiava à casa do morro, em voltas, o caminho,
Até lhe ir esbarrar com as orlas do terreiro;
Dava-lhe o doce ingá, rachado ao sol, o cheiro,
E um rumor de maré o cafezal vizinho.

Quanta vez o subi, buscando a um guaxe o ninho,
Ou, saltando, o desci com o regato ligeiro,
Para voar num balanço, embaixo, o dia inteiro,
E ver girar, zonzando, as asas de um moinho!

De setembro até março, uma colcha de flores
Tapetava-o. Reluz-lhe em poças de água o céu;
Das folhas sobre o saibro os orvalhos escorrem...

Mas morreram na casa, em cima, os moradores,
Morreu, caindo, a casa, o moinho morreu,
O caminho morreu... Até os caminhos morrem!

Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura.

16 outubro 2009

Fuga para o Egito


Adam Elsheimer (1578-1610). Fuga in Egitto. 1609.

Fonte da foto: Web Gallery of Art.

14 outubro 2009

Vou-me embora pra Pasárgada

Manuel Bandeira

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que eu nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
– Lá sou amigo do rei –
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1930.

12 outubro 2009

Aniversário de três anos

F. Ponce de León

Nesta segunda-feira, 12/10, o Poesia contra a guerra completa três anos no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 76.673 visitas haviam sido registradas ao longo desse período.

Nos últimos 12 meses, foram ao ar textos de 122 novos autores, além de outros que já haviam sido publicados antes – ver Aniversário de dois anos. Eis a lista com o nome dos novos autores:


A. G. Cairns-Smith, Adam Mickiewicz, Adão Ventura, Albert Camus, Albert Jacquard, Alfonso Reyes, Ana Cristina Cesar, Alexander I. Oparin, Ann Finkheiner, Antonio Machado, António Manuel Couto Viana e Arthur Koestler;

Bastos Tigre, Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, Bertrand Russell e Boris Pasternak;

C. H. Waddington, Carl Djerassi, Carlito Azevedo, Carlos Saldanha, Cartola, Chacal, Charles Darwin, Charles Dickens, Chuang-Tzu, Claude Lévi-Strauss e Cristovam Pavia;

Deborah Gordon e Derek de Solla Price;

E. M. de Melo e Castro, Edgar Allan Poe, Edgar Morin, Edmond Jabès, Edward O. Wilson, Eduardo Milán, Elias José, Erich Fromm, Ernest Becker, Ernest Hemingway, Esopo e Eugene Field;

Faria Neves Sobrinho, Fernando Guedes, Fernando Guimarães, Francisco Carvalho, Francisco Rodrigues Lobo e Freeman Dyson;

Gaston Bachelard, Gavin Pretor-Pinney, Gerhardt Hauptmann, Geraldo Carneiro, Goethe, Gregory Bateson e Guenádi Aigui;

Haroldo de Campos, Hedy West, Henri Bergson, Henri Zerner, Henrik Stangerup, Henry Walter Bates, Hilda Hilst e Homero;

Isabel Câmara;

Jacques Monod, Jean Ladrière, João Roiz de Castelo-Branco, Joel Silveira, John B. Calhoun, John Fogerty, John Ziman, Jonathan Swift, José Gomes Ferreira, José Chagas e Jules Supervielle;

Keith Thomas;

Lélia Coelho Frota, Leonel Rugama, Lima Barreto, Lu Menezes, Luís Veiga Leitão e Luiz Olavo Fontes;

Manoel Caboclo, Manuel da Fonseca, Maria Tereza de Queiroz Piacentini, Marq de Villiers, Michael Pollan, Miguel Torga e Múcio Teixeira;

Néstor Perlongher e Norman Gimbel;

Odylo Costa, filho, Olive A. Wadsworth, Orlando González-Esteva e Oswald de Andrade;

Paul Davies, Paul Tillich, Paul Verlaine, Paulo Bomfim, Paulo Leminski, Pedro Homem de Mello e Percy Bysshe Shelley;

Rachel de Queiroz, Rafael Alberti, René Dumont, Richard Conniff, Robert Frost, Robert K. Merton, Roberto Drummond, Roger Penrose, Rubén Darío e Ruy Cinatti;

Sebastião Uchoa Leite, Sérgio Capparelli, Sidónio Muralha e Sousândrade;

Thomas Malthus, Thomas More, Tom Cutler e Tomaz Kim;

Vasko Popa;

William James;

Zécarlos Ribeiro e Zila Mamede.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes 40 pintores: Anders Zorn, Arthur Hughes; Bartolomé Esteban Murillo; Caspar David Friedrich, Carel Fabritius, Constantinos Volanakis; Francesco Hayez, Francisco de Zurbarán, Frank Duveneck, Frederick Sandys; George Caleb Bingham, George Frederic Watts, Georgios Jakobides, Gerritt Dou, Giorgio Morandi, Giorgione, Giovanni Bellini, Grant Wood, Gustave Caillebotte; Hans Holbein, o Jovem, Hans Meming; I. C. Dahl; Jean-Baptiste Corot, Jean-Honoré Fragonard, Johan Barthold Jongkind, John Twachtman, Juan Sánchez Cotán, Jules Joseph Lefebvre; Lawrence Alma-Tadema; Nicolaes Berchem, Nicolaes Maes, Nikephoros Lytra, Nikolaos Gysis; Odilon Redon; Pieter de Hooch; Roberto Ferruzzi; William Bouguereau, William Merritt Chase; Théodore Géricault e Thomas Cole.


11 outubro 2009

Lagoa Santa

Henrik Stangerup

1.
A hora das explorações nas grutas está para se encerrar. Ossadas esparramam-se por todos os cantos da pequena e modesta casa, no chão, nas mesas, no anexo do lado de fora. Algumas estão embrulhadas em papel de jornal, outras dentro de caixas, mas muitas, apenas com pequenas etiquetas coladas, ainda dependem de arrumação. Um punhado amontoa-se num canto do jardim à espera de ser catalogado. São ossadas que Dr. Lund sente dificuldade em classificar e mesmo desconfia que já sejam do período histórico. Dr. Lund está cansado, mas sente orgulho do que realizou. Ao longo de quase dez anos, sozinho, com a ajuda de apenas alguns negros relaxados e de Brandt, quando não estava ocupado com seus pincéis e cavaletes, conseguiu realizar um trabalho que exigiria pelo menos dez dos mais lúcidos cientistas. Para tanto, viajou milhares de quilômetros em lombo de cavalo ou burro, pernoitou deitado sobre peles de boi e abrigado por cobertores esburacados em incômodas reentrâncias das grutas, enquanto os fachos eram dispostos ao longo do trajeto de modo a lhe permitir, com rapidez, durante a noite, encontrar o caminho de volta para fora, se as dores no peito, por acaso, se anunciassem.

Sacrificou qualquer forma de conforto. Meses se passavam entre duas refeições que se pudessem chamar de dignas; apenas debaixo de quedas d’água, ou em sua casa de Lagoa Santa, tinha oportunidade de lavar-se desse pó que por semanas inteiras o impregnava. Teve acessos de febre, a sede martirizava-o quando se perdia pelos campos cerrados e, por vezes, era tão forte o sol que lhe nasciam chagas na testa. Plantas arranhavam-lhe a pele, insetos mordiam-no, terríveis dores de barriga obrigavam-no a recolher-se à cama por semanas a fio. Sim, Dr. Lund sente orgulho por ter sabido resistir a esses dez anos de intenso labor. Está ansioso por retornar em breve à Europa, à companhia de pessoa civilizadas, aos paralelepípedos das ruas, às calçadas, restaurantes, bibliotecas, sorrisos amáveis, olhares alertas, jornais sérios, escolares vivos, gente de comércio. E a Copenhague, onde haverá de se reencontrar com H. C. Oersted e Schouw e Forchhammer e Reinhardt, e onde poderá passar agradáveis horas noturnas em companhia da família. E a Paris, onde trocará idéias com seus colegas franceses e participará dos debates em torno do testamento científico de Cuvier. Mas é no Sul da França que mora seu coração. Na Provença. É ali que pensa em morar a maior parte do ano, envolto num perfume de lavanda e tomilho, e freqüentes incursões até Roma, Paris e Viena. Mais meio ano e será ainda uma vez europeu, tal como se sente de corpo e alma.
[...]

Fonte: Stangerup, H. 1983. Lagoa Santa: vidas e ossadas. RJ, Nórdica.

09 outubro 2009

A tempestade


Giorgione [Giorgio da Castelfranco] (1478-1510). La tempesta. 1507-8.

Fonte da foto: Web Gallery of Art.

07 outubro 2009

A mosca

William Blake

Pequena mosca
Em tua dança de verão
minha descuidada mão
deu um safanão.

Não sou eu
Também uma mosca?
Ou não serás tu
Um homem como eu?

Pois fico a dançar
e beber e cantar
Até que uma cega mão
vem me espantar.

Se pensamento é vida
E respiração e vigor
A ausência
De pensamento é dor,

Então sou
Uma mosca feliz
Se eu vivo,
Ou se me vou.

Fonte: edição No. 67 (março de 1997) da revista Ciência Hoje das Crianças. Poema publicado em livro em 1794.

05 outubro 2009

O grande, o pequeno e a mente humana

Roger Penrose

3.
[...]
Que é consciência? Bem, não sei como defini-la. Acho que esse não é o momento de tentar definir consciência, uma vez que não sabemos o que ela seja. Creio que seja um conceito fisicamente acessível; no entanto, defini-la seria provavelmente definir a coisa errada. No entanto, vou defini-la, em certa medida. Acho que existem pelo menos dois diferentes aspectos da consciência. Por um lado, existem manifestações passivas de consciência, que implicam receptividade [awareness]. Uso essa categoria para incluir coisas como percepção de cor, de harmônicos, o uso da memória, e assim por diante. De outro modo, existem suas manifestações ativas, que implicam conceitos como livre-arbítrio e realização de ações sob nosso livre-arbítrio. O uso desses termos reflete diferentes aspectos de nossa consciência.

Vou concentrar-me aqui principalmente em outra coisa que envolve a consciência de maneira essencial. É diferente tanto do aspecto passivo quanto do aspecto ativo da consciência, e talvez seja algo intermediário. Refiro-me ao uso do termo entendimento, ou talvez intuição [insight], que muitas vezes é uma palavra melhor. Também não vou definir esses termos – não sei o que querem dizer. Existem outras duas palavras que não entendo – receptividade e inteligência. Bem, por que estou falando sobre coisas que não sei o que significam realmente? Provavelmente porque sou um matemático e os matemáticos não se preocupam muito com esse tipo de coisa. Não necessitam de definições precisas das coisas de que estão falando, contanto que possam falar algo acerca das conexões entre elas. O primeiro ponto-chave aqui é que me parece que a inteligência seja algo que requer entendimento. Usar o termo inteligência num contexto em que negamos que qualquer entendimento esteja presente me parece insensato. Da mesma forma, entendimento sem nenhuma receptividade também é um pouco absurdo. Esse é o segundo ponto-chave. Assim, isso significa que a inteligência requer a receptividade. Embora não esteja definindo nenhum desses termos, acho que é razoável insistir nessas relações entre eles.
[...]

Fonte: Penrose, R. 1998. O grande, o pequeno e a mente humana. SP, Editora da Unesp.

03 outubro 2009

Canção para o retorno das andorinhas

Edmond Jabès

Se eu pegasse teus braços
E os cortasse em quatro
Terias tantos braços
como se fosses quatro

Reis
quatro
Rainhas
quatro
leis

e quatro
tinhas

Se eu pegasse tua boca
E a cortasse em quatro
Terias tantas bocas
como se fosses quatro

Lagos
e quatro
luas
quatro afagos
e quatro
ruas

Se eu pegasse teu coração
E o cortasse em quatro
Terias tantos corações
como se quebrasses quatro

Bilhas
E quatro
Fundos
Quatro quilhas
E quatro
Mundos.

Fonte: Balbuena, M. R. 1991. Um poeta: Edmond Jabès. Revista USP 10: 109-19. Poema publicado em livro em 1959.

01 outubro 2009

Aquerôntico

Lélia Coelho Frota

É de noite que os mortos voltam
em sua barca de papel
a roçar a porta do sono
em que inermes escurecemos
mais um dia – pulmão de chama
contrariando a luz da manhã!

É de noite pela amurada
que vêm se debruçar conosco
e indulgem – apenas sorriem
sem qualquer resguardo, sem ênfase –
em ir e vir, em ter partido.
Impressões de viagem? Alheias
como a do perfil de uma dracena.

Remiram-nos maliciosos
pensos de ternura se quedam
em sua fosca primavera,
atrás de embaciados acenos,
pacientes, à nossa espera.

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial.

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