30 janeiro 2011

Longe da China

Rodrigo Otávio

Eis a triste asiática formosa,
alma que vive, em sonhos, no castelo
de porcelana, em que deliciosa
correu-lhe a infância junto ao noivo belo,

a visionária, a mística, a saudosa
de olhos de amêndoa... Eterno pesadelo
transporta seu espírito à arenosa
planície onde abre o cáctus amarelo.

Não sei se o que ela vive é mesmo vida...
Vagueia à noite solitária pelas
ruas desertas, se o luar aclara;

olha o céu, olha o oceano e comovida
pede às ondas do mar, pede às estrelas
novas do ingrato que em Pequim ficara...

Fonte: Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 4. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em livro em 1887.


28 janeiro 2011

Evolução da resistência

Daniel L. Hartl & Andrew C. Clark

Alguns dos exemplos mais dramáticos da evolução em ação resultam da seleção natural para a resistência a pesticidas químicos em populações naturais de insetos e outras pragas da agricultura. Nos anos 1940, quando os pesticidas químicos foram primeiramente utilizados em larga escala, uma estimativa de 7% da safra agrícola dos Estados Unidos era perdida em virtude da ação de insetos. Sucessos iniciais no manejo químico de pragas foram seguidos por uma perda gradual de efetividade. Hoje, mais de 400 espécies de pragas evoluíram uma resistência significa a um ou mais pesticidas, e 13% da safra agrícola nos Estados Unidos são perdidos em virtude da ação de insetos. O custo total e a perda associada a insetos em 2005 foram de 1,264 bilhão de dólares [...]. Em muitos casos, a resistência significativa a pesticidas evoluiu em 5 a 50 gerações, independentemente de espécie de inseto, região geográfica, pesticida, frequência e método de utilização e outras variáveis igualmente importantes. Detalhes em exemplos reais dependem de fatores como número efetivo da população e extensão do isolamento genético entre populações locais. A evolução da resistência causada por múltiplos alelos interativos pode ser mais longa do que uma resistência de um único gene.
[...]

Fonte: Hartl, D. L. & Clark, A. C. 2010 [2007]. Princípios de genética de populações, 4ª edição. Porto Alegre, Artmed.


25 janeiro 2011

Crianças

Khalil Gibran

E uma mulher que trazia ao colo uma criança
Pediu: “Fala-nos das crianças.”
E ele disse:
“Vossos filhos não são vossos filhos:
São os filhos e filhas da saudade que a Vida sente de si mesma.
Vêm por meio de vós, mas não de vós,
E ainda que estejam convosco, não vos pertencem.
Podeis dar-lhes o vosso amor, não o vosso pensamento,
Pois eles têm o seu próprio pensar.
Podeis dar agasalho aos seus corpos, não porém às suas almas,
Porque as suas almas se vão acolher num amanhã que não podeis visitar nem mesmo em sonhos.
Podeis desejar ser como eles, mas não tentar fazê-los parecidos convosco.
Porque a vida não retrocede nem se detém no dia de ontem.”

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Trecho de capítulo do livro O profeta, originalmente publicado em 1923.


23 janeiro 2011

Pollice verso


Jean-Léon Gérôme (1824-1904). Pollice Verso. 1872.

Fonte da foto : Art Renewal Center.

21 janeiro 2011

Descobertas múltiplas

Augustine Brannigan

Nenhuma observação singular deu mais impulso à sociologia e à antropologia da ciência do que a observação de que a história da descoberta científica é a história de descobertas múltiplas, independentes e simultâneas. Isto é, a história da ciência sugere que certas leis e fatos científicos têm sido repetidamente revelados por diferentes cientistas trabalhando independentemente, mais ou menos no mesmo período de tempo. Essa observação é o ponto central do famoso artigo de William F. Ogburn e Dorothy S. Thomas ‘Are inventions inevitable?’, que contém uma lista de 148 descobertas múltiplas e simultâneas nos campos da ‘antropologia, matemática, química, física, eletricidade, fisiologia, biologia, psicologia e invenções mecânicas práticas’.

Essas descobertas simultâneas são citadas como evidência de que as invenções e descobertas ocorrem em virtude do nível de desenvolvimento cultural atingido por uma sociedade. Se determinado descobridor falhar em revelar uma nova lei, a sociedade não ficará pior por isso, pois a história da ciência mostra que a lei virá à luz através do trabalho de outra pessoa quase na mesma época. Sendo assim, há “bastante evidência indicando que a acumulação ou o crescimento da cultura atinge um estágio em que certas invenções, se não são inevitáveis, são certamente muito prováveis, dado um nível determinado de habilidade mental”. Ao citar a mesma passagem, Lesley White omite a referência a ‘habilidade mental’. Para White, a questão da genialidade é totalmente redundante dentro de uma perspectiva cultural. As descobertas ocorrem independentemente do QI de indivíduos específicos e, de modo inevitável, em um ponto em que a cultura alcança certa ‘massa crítica’.
[...]

Fonte: Brannigan, A. 1984 [1981]. A base social das descobertas científicas. RJ, Zahar.


19 janeiro 2011

Fotogenia de Sísifo

António Cabrita

1.
Observas o rosto hirto na vidraça
e respirando fundo sabes: a luz
alonga os traços como um remorso –
porque tudo é nosso e doutrem.
Roubas e roubam-te, do mais
à margem te mantêm, ou a vau.
Desmunido. Que cem anos
não confortam a cova de um dente,
nem refreiam o susto de quando
o silêncio bate portas – é coisa
pública. Veja-se o caso das mãos:
cinco dedos são poucos. Uma
redige o ele de solidão e já outra
congela o sangue nas torneiras.

2.
Secreto condomínio, o de cada veia
no seu galho. E grave: com um nome
morto que assobia dentro em ti.
Mexe mais que duas ou três palhas
a Dor que desova e te perfura
a gaze no pulmão: as ideais
aderem-lhe, são o teu recife.
Um dia serás tu o orifício,
a emudecida parcela inanimada.
Pois mesmo que perene o esforço
– de rasgar os cascos em águas claras
p’ra reconhecer no fundo arenoso
dedos róseos pedacinhos d’ossos
conchas e massacres – é vão.

3.
Cresceste para a rebentação
da folhagem, para o cheiro a sangue
se o colírio do amor desnuda
as paisagens. E eis-te enxertado
em árvore que já deu fruto.
Sim, não demoraste a vazar
nos buracos de fora o que constela,
intérmino, secreto, os de dentro:
a espora do medo ou o gaseificado
livor do sangue, mas serve a quem
a obsessão de achar raízes na água?
O melhor é não fechar os olhos
se um rosto fumegante acorda
nos sonhos o agrimensor de deus.

4.
Já nada entreabre. Nem ócios
nem aluviões. Vazado simplesmente
num hangar de trânsfugas,
cedes ao mais profundo desafecto.
Hum, aliciavam-te com a ‘alquimia
do amor’ tu que cálculos nem renais.
Exigem agora que te afeiçoes
à boquilha de ‘outro’, à âncora
com que sondou o fundo – ritmos,
motivos e guelras expostos até ao ranço.
Mas se já a infância não passou
de um cão afásico há-de o sedimento
dobrar-te o cachaço, apegar-te
mais ao travão do que à embalagem?

5.
Alheado, inviolável, te querias.
Interessares-te por um tufão em Macau
se hoje ainda não inquiriste sobre Plotino
as gardênias? Sazonalmente, quanto
muito (um clamor encurta razões),
atentar no número que a oblonga
língua do gato grafa à tona
das feridas. Que todo o voo é
amadurecimento antes da queda –
sabe-lo há muito. Ao fundo da garagem,
cartas de ventos e naufrágios
amontoam-se ao lado de garrafas
de lixívia e vinho – lenho que no mais
subtil da alba dessangra as madrugadas.

6.
Abraça o teu cadáver, tem frio.
Não é de hoje que a noite se abre
ao labor da morte – vê nas vitrinas
o coração lapidado da saudade.
A raros o corpo deslumbrado
cedo não solicita a exoneração
dos dons. A vida a soldo bem
nos delata e despeja asco a asco
no couto da manhã, pois (já
o escreveste) cego que não apalpa
é cego imaturo. O próprio criador
da telenovela, Homero, que amor-
talhou de rosas as manhãs e deu nome
aos direitos de autor, tem frio.

7.
Já que o corpo te extradita o sopro
derradeiro não atreles o poema.
Vê como parnasiam os amigos,
alegres esponsais da usura.
Pareciam engasgar-se contigo
no esplendor do vinho. Só a ti
alarmava a visão do coxo
que atravessa gota a gota a ínsua
das horas? Revês-lhes a finta ladina
a urna apertadas dos tomates
e fechas gelosias: que o rosto
que te desembarcou no mistério
te perca agora na obstinada
suspensão dos seus inquilinos.

8.
Não há diafragma para a melancolia.
Pode prever-se uma reparação, um espírito
que ajardine a casa – alumém e lume
não tem por missão confundir(-se)!
Um exemplo: em ti era normal,
o outono quebrava-te as mãos
pelos pulsos e amareleciam,
deslembradas. Mas pela primeira
vez não se segue o armistício.
E contudo, recolhidos como vadios
sob alpendres de parreiras,
ainda esperamos soldo,
um verso que salve do ex-
termínio as minudências.

9.
Outras não rolarão facilmente
pelo parapeito das manhas:
a tua cabeça cabe inteira
numa mão e pende do ramo
tenro que ampara a pressaga
polpa do silencio. Prazeres,
derrotas, o visco do sentimento
nutrem-lhe a sombra e até
a indevida afasia onde bicou
a cotovia. Pegas na faca
como quem sopesa um olho.
Até ao cabo e depois:
o sangue assimila tudo. Sonhas
que te é dedicada a morte.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1997.


17 janeiro 2011

Diálogo final

Raul de Leoni

– Como são lindos os teus grandes versos!
Que colorido humano! que profundo
Sentido e harmonia generosa
Encerram, nos seus símbolos diversos!...

– Sim, mas para fazê-los fui ao fundo
Das cousas, nessa Via-Dolorosa
Do pensamento, que no fim é sempre triste.
Sofri muito entre os seres infelizes...
Tu não sabes de nada... tu não viste...

– Não, nunca imaginei o que me dizes...
Mas teus versos me fazem tanto bem,
São tão belos! de formas tão luxuosas!...

– É isso mesmo!... É a beleza irônica que vem
Da amargura invisível das raízes,
Para dar a vaidade efêmera das rosas...

Fonte: Leoni, R. 1998. Luz mediterrânea. BH, Garnier. Poema publicado em livro em 1922.


15 janeiro 2011

Por uma teoria da morfogênese

René Thom & Émile Noël

[...]
Émile Noël – Pode haver similitudes de formas e similitudes de funções. É possível cruzar essas duas noções?

René Thom – Você sabe, o biólogo inglês [Richard] Owen dizia que dois órgãos são homólogos se possuem a mesma relação quanto aos outros órgãos, mesmo que existam variações de formas e de funções. Owen admitia a existência das variações de formas intrínsecas e das variações funcionais, mas atinha-se à possibilidade de uma estruturação global que seria, esta sim, definida intrinsecamente. Mas, se a intenção é precisão, é necessário efetivamente proceder de outra forma e partir da noção daquilo que Aristóteles chamava de homeomerias, isto é, ambientes fenomenologicamente homogêneos. Uma homeomeria é um ambiente tal que, se tenho dois pontos A e B nesta homeomeria, o ponto A tem uma pequena vizinhança na esfera VA, o ponto B uma pequena vizinhança na esfera VB e, no interior dessas duas esferas, pode-se aplicá-las uma sobre a outra de modo compatível com suas propriedades fenomenais.

Émile Noël – Isso significa, por exemplo, que todo tecido muscular, segundo Aristóteles, é uma homeomeria?


René Thom – Exatamente. A medula é uma homeomeria. O sangue é uma homeomeria. As anomeomerias, ao contrário, caracterizam-se pelo fato de que nelas se encontram biombos que separam os ambientes fenomenologicamente diferentes.

Émile Noël – Chama-se a isso de anomeomerias?


René Thom – Sim. São as partes do corpo descritas pela linguagem comum: a cabeça, o pescoço, os membros etc.

Émile Noël – Compostas por diversos tecidos diferentes...

René Thom – Isso mesmo. Aliás, existe aí um problema que se pode levantar para a biologia contemporânea, entrevisto por Aristóteles – ele não o resolveu, mas o entreviu: em toda anomeomeria, existem diversas homeomerias. Em outras palavras, para que um ambiente seja funcionalmente atuante no organismo, ele não pode ser homogêneo. É preciso que tenha, como atualmente se diria, compartimentos diferentes, separados por membranas. E o papel das membranas é justamente um enorme problema teórico da biologia contemporânea: Por que membranas?
[...]

Fonte: Noël, E., org. 1996. As ciências da forma hoje. Campinas, Papirus.


13 janeiro 2011

Velório


Francisco Oller (1833-1917). El Velorio. 1893.

Fonte da foto: Wikipedia.

12 janeiro 2011

Quatro anos e três meses no ar

F. Ponce de León

Nesta quarta-feira, 12/1, o Poesia contra a guerra completa quatro anos e três meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 117.750 visitas haviam sido registradas nesse período.

Desde o balanço mensal anterior – Cinqüenta meses no ar – foram aqui publicados textos dos seguintes autores: Carl Zimmer, Graciliano Ramos, Joan Baez, José Pacheco, Leon Henkin, Luís Guimarães Júnior, Ricardo G. Ramos e Vasco Graça Moura. Além de outros autores que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Armand Guillaumin e Cigoli.


10 janeiro 2011

Uma chama, um nome

E. M. de Melo e Castro

uma chama não chama a mesma chama
há uma outra chama que se chama
em cada chama que chama pela chama
que a chama no chamar se incendeia

um nome não nome o mesmo nome
um outro nome nome que nomeia
em cada nome o meio pelo nome
que o nome no nome se incendeia

uma chama um nome a mesma chama
há um outro nome que se chama
em cada nome o chama pelo nome
que a chama no nome se incendeia

um nome uma chama o mesmo nome
há uma outra chama que nomeia
em cada chama o nome que se chama
o nome que na chama se incendeia

Fonte: Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema publicado em livro em 1968.


08 janeiro 2011

O que o outro tem

Ricardo G. Ramos

Do mais perto que sente
Tem o amor do cão abandonado
Este amigo soltador de pêlos
Pregados no tapete azul

Do mais longe, tem a mãe
Tão preocupada em outra cidade
Que lambe seu sexo à distância
Cultivando a ereção impossível

Tem também como vizinhos
Os que pagam salários
Os que visam pecúlios
Segurando a ditadura
Pra viver & pra morrer

E tem a idéia experimental
Exclusiva do poeta do processo
Estabelecendo o nada de novo
Dourando a propriedade do velho

E tem sua mulher esperando
Que já ganhou carrinho usado
Por isso apodrece o esperma
Para regar a tranqüilidade
Com o mijar do homem bem vestido

Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4ª edição. RJ, Aeroplano.


06 janeiro 2011

A chegada de Lampião no inferno

José Pacheco

Um cabra de Lampião,
Por nome Pilão-Deitado,
Que morreu numa trincheira
Um certo tempo passado,
Agora pelo sertão
Anda correndo visão,
Fazendo mal assombrado.

E foi quem trouxe a notícia
Que viu Lampião chegar.
O Inferno, nesse dia,
Faltou pouco pra virar –
Incendiou-se o mercado,
Morreu tanto cão queimado,
Que faz pena até contar!

Morreu a mãe de Canguinha,
O pai de Forrobodó,
Cem netos de Parafuso,
Um cão chamado Cotó.
Escapuliu Boca-Insossa
E uma moleca moça
Quase queimava o totó.

Morreram cem negros velhos
Que não trabalhavam mais,
Um cão chamado Traz-Cá,
Vira-Volta e Capataz,
Tromba-Suja e Bigodeira,
Um cão chamado Goteira,
Cunhado de Satanás.

Vamos tratar na chegada,
Quando Lampião bateu.
Um moleque ainda moço
No portão apareceu:
– Quem é você, cavalheiro?
– Moleque, sou cangaceiro!
Lampião lhe respondeu.

– Moleque, não! Sou vigia!
E não sou seu parceiro –
E você aqui não entra
Sem dizer quem é primeiro!
– Moleque, abra o portão!
Saiba que sou Lampião,
Assombro do mundo inteiro!

Então, esse tal vigia,
Que trabalha no portão,
Dá pisa que voa cinza,
Não procura distinção!
O negro escreveu não leu,
A macaíba comeu –
Ali não se usa perdão!

O vigia disse assim:
– Fique fora, que eu entro.
Vou conversar com o chefe,
No gabinete do centro –
Por certo ele não lhe quer,
Mas, conforme o que disser,
Eu levo o senhor pra dentro.

Lampião disse: – Vá logo,
Quem conversa perde hora –
Vá depressa e volte logo,
Eu quero pouca demora!
Se não me derem ingresso
Eu viro tudo às avesso,
Toco fogo e vou embora!

O vigia foi e disse
A Satanás, no salão:
– Saiba Vossa Senhoria
Que aí chegou Lampião,
Dizendo que quer entrar –
E eu vim lhe perguntar
Se dou-lhe o ingresso, ou não.

– Não senhor! Satanás disse,
Vá dizer que vá embora!
Só me chega gente ruim,
Eu ando muito caipora –
Eu já estou com vontade
De botar mais da metade
Dos que tenho aqui pôr fora!

Lampião é um bandido,
Ladrão da honestidade:
Só vem desmoralizar
A nossa propriedade –
E eu não vou procurar
Sarna para me coçar,
Sem haver necessidade!

Disse o vigia: – Patrão,
A coisa vai se arruinar!
Eu sei que ele se dana,
Quando não puder entrar!
Satanás disse: – Isso é nada!
Convide aí a negrada
E leve os que precisar!

Leve cem dúzias de negros,
Entre homem e mulher;
Vá na loja de ferragem,
Tire as armas que quiser.
É bom avisar também
Pra vir os negros que tem,
Mais compadre Lucifer!

E reuniu-se a negrada:
Primeiro chegou Fuchico,
Com um bacamarte velho,
Gritando por Cão-de-Bico
Que trouxesse o pau da prensa
E fosse chamar Tangença,
Na casa de Maçarico.

E depois chegou Cambota,
Endireitando o boné,
Formigueira e Trupezupé,
E o Crioulo-Queté.
Chegou Bagé e Pecaia,
Rabisca e Cordão-de-Saia,
E foram chamar Banzé.

Veio uma diaba moça,
Com a calçola de meia.
Puxou a vara da cerca,
Dizendo: – A coisa está feia –
Hoje o negócio se dana!
E gritou: – Eta, baiana!
Agora o tipo vadeia!

E saiu a tropa armada
Em direção do terreiro,
Com faca, pistola e facão,
Clavinote, granadeiro.
Uma negra também vinha
Com a trempe da cozinha
E o pau de bater tempero.

Quando Lampião deu fé
Da tropa negra encostada,
Disse: – Só na Abissínia!
Oh, tropa preta danada!
O chefe do batalhão
Gritou, de armas na mão:
– Toca-lhe fogo, negrada!

Nessa hora, ouviu-se os tiros,
Que só pipoca no caco.
Lampião pulava tanto,
Que parecia um macaco!
Tinha um negro nesse meio
Que, durante o tiroteio,
Brigou tomando tabaco.

Acabou-se o tiroteio
Por falta de munição,
Mas o cacete batia,
Negro enrolava no chão.
Pau e pedra que achavam,
Era o que as mãos pegavam,
Sacudiam em Lampião.

– Chega atrás um armamento!
Assim gritava o vigia.
Traz a pá de mexer doce!
Lasca os ganchos de caria!
Traz um bilro de macau!
Corre, vai buscar um pau,
Na cerca da padaria!

Lucifer com Satanás
Vieram olhar, do terraço,
Todos contra Lampião,
De cacete, faca e braço.
O comandante, no grito,
Dizia: – Briga bonito,
Negrada! Chega-lhe o aço!

Lampião pôde apanhar
Uma caveira de boi.
Sacudiu na testa dum,
Ele só fez dizer: – Oi!
Ainda correu dez braças
E caiu, segurando as calças –
Mas eu não sei por que foi!

Estava travada a luta,
Mais de uma hora fazia.
A poeira cobria tudo,
Negro embolava e gemia,
Porém Lampião ferido
Ainda não tinha sido,
Devido à grande energia.

Lampião pegou um seixo
E rebolou-o num cão,
Mas o que arrebentou?
A vidraça do oitão –
Saiu um fogo azulado,
Incendiou o mercado
E o armazém de algodão.

Satanás, com esse incêndio,
Tocou no búzio, chamando.
Correram todos os negros
Que se achavam brigando.
Lampião pegou a olhar –
Não vendo com quem brigar,
Também foi se retirando.

Houve grande prejuízo
No inferno, nesse dia:
Queimou-se todo o dinheiro
Que Satanás possuía,
Queimou-se o livro de pontos,
Perdeu-se vinte mil contos,
Somente em mercadoria.

Reclamava Lucifer:
– Horror maior não precisa!
Os anos ruins de safra,
Agora mais esta pisa –
Se não houver bom inverno,
Tão cedo aqui, no inferno,
Ninguém compra uma camisa!

Leitores, vou terminar,
Tratando de Lampião,
Muito embora que não possa
Vos dar a explicação –
No inferno não ficou,
No céu também não chegou:
Por certo está no sertão!

Quem duvidar desta história,
Pensar que não foi assim,
Querer zombar do meu sério,
Não acreditando em mim –
Vá comprar papel moderno,
Escreva para o Inferno,
Mande saber de Caim!

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema publicado como folheto de cordel em ano desconhecido (primeira metade do século 20).


04 janeiro 2011

A equação de uma baleia

Carl Zimmer

Uma das coisas que mais impressionaram Balzac a respeito de Cuvier foi que ele “reconstruía cidades a partir de um dente, como Cadmo”. O Barão dos Fósseis granjeou sua reputação com relação a dentes em 1804, quando recebeu o esqueleto de uma criatura do tamanho de um gato das pedreiras de calcário de Montmartre. Ela deixara sua marca em duas lascas de pedra que se encaixavam como sardinhas na lata. Os quadris, as pernas e pedaços da espinha alojavam-se numa das peças de calcário, com o resto do esqueleto na outra peça: um ombro, um braço e parte da mandíbula, os dentes como que num sorriso meio escancarado na pedra. Sem uma idéia clara de que tipo de animal se tratava, Cuvier levou o fóssil para o seu laboratório de museu e começou a examinar a boca do animal, desencravando os ossos e desenhando os detalhas à medida que avançava.

Podia ver a saliência na parte de trás da mandíbula, onde ela se articulava com o crânio, característica chamada de côndilo e que só os mamíferos possuem. Em muitos mamíferos o côndilo eleva-se alto atrás da maxila, mas a criatura no calcário recebido por Cuvier tinha um côndilo baixo que mal sobressaía das fileiras de dentes. Pôde de imediato eliminar a hipótese de ser um gato, cão ou marta, porque só animais como a toupeira, o porco-espinho, o morcego e o opossum têm mandíbula desse tipo. Cuvier soltou a mandíbula inferior e expôs as duas fileiras de dentes. Não eram pontiagudos como os de um carnívoro nem achatados como os de um herbívoro, uma vaca por exemplo. Eles se eriçavam em pequenos vértices pontudos – o tipo de dentes também característico apenas dos mamíferos com côndilo baixo. Sob uma lupa, pôde ver que alguns dentes eram triangulares, com três cúspides na forma de ganchos. Uma toupeira tem sete cúspides desse tipo; igualmente um morcego; um porco-espinho tem quatro. Os únicos mamíferos que têm três são certos marsupiais: o opossum da América do Sul e do Norte e seus parentes, os dasiurídeos da Austrália (grupo que inclui o diabo-da-tasmânia).

“Parei o meu trabalho nos dentes antes de me ocupar do resto do esqueleto”, escreveu mais tarde Cuvier, “mas podia prever tudo apenas a partir desse índice. Número de partes, formas, proporções – tudo o que a superfície da rocha nos oferecia achava resposta completa à primeira vista.”
[...]

Fonte: Zimmer, C. 1999. À beira d’água. RJ, Jorge Zahar.


02 janeiro 2011

Desencanto

Poh Pin Chin

Nem distante
nem passado;
no ponto exato:
aqui e agora.

Tarde chuvosa,
com a mãe
e o caçula dentro,
distraídos.

E então
o irascível inesperado:
rostos disfarçados
e suas vozes alteradas.

Olhar fixo
na única mão armada.
Meia dúzia de objetos,
algumas moedas.

Susto, medo, raiva
e depois o cansaço –
a dor no peito,
o ombro pesado.

Desencanto.


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