30 setembro 2011

O pavão misterioso

José Camelo de Melo Resende

Creuza disse: – Estou pronta
Já podemos ir embora!
E subiram pela corda
Até que saíram fora
Se aproximava a alvorada
Pela cortina da aurora.

Com pouco, o conde acordou,
Viu a corda pendurada
Na coberta do sobrado.
Distinguiu uma zoada
E as lâmpadas do aparelho
Mostrando luz variada.

E a gaita do pavão
Tocando com rouca voz
O monstro de olhos de fogo
Projetando seus faróis,
O conde mandando praga,
Disse a moça: – É contra nós!

Os soldados da patrulha
Estavam de prontidão,
Disseram: – Vem ver, Fulano!
Lá vai passando o pavão!
O monstro fez uma curva
Para tomar a direção.

Então dizia um soldado:
– Orgulho é uma ilusão!
Um pai governa a filha,
Sem mandar no coração –
E agora a condessinha
Vai fugindo no pavão!

O conde olhou para a corda,
Viu o buraco no telhado,
Como tinha sido vencido
Pelo rapaz atilado,
Adoeceu só de raiva,
Morreu por não ser vingado.

Logo que Evangelista
Foi chegando na Turquia
Com a condessa da Grécia,
Fidalga da monarquia,
Em casa de João Batista
Casou-se no mesmo dia.

Em casa de João Batista
Deu-se o grande ajuntamento
Dando viva aos noivados,
Parabéns do casamento.
À noite teve retreta
Com visita e cumprimento.

Enquanto Evangelista
Gozava imensa alegria,
Chegava um telegrama
Da Grécia para a Turquia,
Chamando a condessa Creuza
Pelo motivo que havia.

Dizia o telegrama:
Creuza vem com teu marido
Receber a tua herança:
O conde é falecido.
Tua mãe deseja ver
O genro reconhecido.

A condessa estava lendo,
Com o telegrama na mão.
Entregou a Evangelista
Que mostrou a seu irmão
Dizendo: – Vamos voltar
Por uma justa razão.

De manhã, quando os noivos
Acabaram de almoçar,
E Creuza em trajes de noiva
Pronta para viajar,
De palma, véu e capela
Pois só vieram casar.

Diziam os convidados:
– A condessa é tão mocinha,
Mas, vestida como noiva,
Tornou-se mais bonitinha!
Está com um buquê de flor
Séria como uma rainha!

Os noivos tomaram assento
No pavão de alumínio
E o monstro levantou-se,
Foi ficando pequenino –
Continuou o seu vôo
No rumo de seu destino.

Na cidade de Atenas
Estava a população
Esperando pela volta
Do aeroplano pavão,
Ou cavalo do espaço
Que imita o avião.

Na tarde do mesmo dia
Que o pavão foi chegado,
Em casa de Edmundo
Ficou o noivo hospedado,
Seu amigo de confiança
Que foi bem recompensado.

E também a mãe de Creuza
Já esperava vexada.
A filha mais tarde entrou,
Muito bem acompanhada,
De braço com o seu noivo
Disse: – Mãe, estou casada!

Disse a velha: – Minha filha,
Saíste do cativeiro!
Fizeste bem em fugir
E casar no estrangeiro
Tomem conta da herança –
Meu genro é meu herdeiro!

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. O poema inteiro, publicado em livro na década de 1920, contém 141 estrofes; o trecho acima corresponde às últimas 18.

28 setembro 2011

O pagador de promessas

Dias Gomes

Primeiro ato

(Olhando a igreja.) É essa. Só pode ser essa.

Rosa pára também, junto aos degraus, cansada, enfastiada e deixando já entrever uma revolta que se avoluma.

Rosa
E agora? Está fechada.

É cedo ainda. Vamos esperar que abra.

Rosa
Esperar? Aqui?

Não tem outro jeito.

Rosa
(Olha-o com raiva e vai sentar-se num dos degraus. Tira o sapato.) Estou com bolha d’água no pé que dá medo.

Eu também. (Num ríctus de dor, despe uma das mangas do paletó.) Acho que os meus ombros estão em carne viva.

Rosa
Bem feito. Você não quis botar almofadinhas, como eu disse.

(Convicto.) Não era direito. Quando eu fiz a promessa, não falei em almofadinhas.

Rosa
Então: se você não falou, podia ter botado; a santa não ia dizer nada.

Não era direito. Eu prometi trazer a cruz nas costas, como Jesus. E Jesus não uso almofadinhas.

Rosa
Não usou porque não deixaram.

Não, nesse negócio de milagres, é preciso ser honesto. Se a gente embrulha o santo, perde o crédito. De outra fez o santo olha, consulta lá os seus assentamentos e diz: – Ah, você é o Zé-do-Burro, aquele que já me passou a perna! E agora vem me fazer nova promessa. Pois vá fazer promessa pro diabo que o carregue, seu caloteiro duma figa! E tem mais: santo é como gringo, passou calote num, todos os outros ficam sabendo.

Rosa
Será que você ainda pretende fazer outra promessa depois desta? Já não chega?...

Sei não... a gente nunca sabe se vai precisar. Por isso, é bom ter sempre as contas em dia.

Ele sobe um ou dois degraus. Examina a fachada da igreja à procura de uma inscrição.

Rosa
Que é que você está procurando?

Qualquer coisa escrita... pra gente saber se essa é mesmo a igreja de Santa Bárbara.

Rosa
E você já viu igreja com letreiro na porta, homem?

É que pode não ser essa.
[...]

Fonte: Gomes, D. 1997 [1959]. O pagador de promessas, 34ª edição. RJ, Bertrand.

26 setembro 2011

Pau-brasil

Lalau

Viva o Brasil
Do pau-brasil
Ibirapitanga,
Do açaí,
Banana,
Manacá,
Manga,
Da mata fértil
E rica,
Do muriqui,
Bugio,
Jaguatirica,
Das chuvas,
Borboletas,
Tiziu,
Cachoeira,
Rio,
Tié-sangue,
Mangue,
Dias cor de anil,
Mar azul,
Viva o pau-brasil,
Do Brasil.

Fonte: edição No. 227 (setembro de 2011) da revista Ciência Hoje das Crianças. Poema publicado em livro em 2011. ‘Lalau’ é pseudônimo de Lázaro Simões Neto.

24 setembro 2011

Pierrô


Georges Rouault (1871-1958). Pierrot. 1953.

22 setembro 2011

Canção amarga


Que importa o gesto não ser bem
o gesto grácil que terias?
– Importa amar, sem ver a quem...
Ser mau ou bom, conforme os dias.

Agora, tu, só entrevista,
quantas imagens me trouxeste!
Mas é preciso que eu resista
e não acorde um sonho agreste.

Que passes tu! Por mim, bem sei
que hei-de aceitar o que vier,
pois tarde ou cedo deverei
de sonho e pasmo apodrecer.

Que importa o gesto não ser bem
o gesto grácil que terias?
– Importa amar, sem ver a quem...
Ser infeliz, todos os dias!

Fonte: Mourão-Ferreira, D. 1980. Obra poética, vol. I. Lisboa. Bertrand.

20 setembro 2011

Memórias póstumas de Brás Cubas

Machado de Assis

1.
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo principio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a suas morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.

Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia – peneirava – uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que proferiu à beira da minha cova: – “Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais intimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.”

Fonte: Assis, M. 1997 [1881]. Memórias póstumas de Brás Cubas. RJ, Klick.

18 setembro 2011

Metaformose

Valéria Paz de Almeida

A palavra atravessa
a máscara pálida da emoção
e instiga o reflexo ofuscante da criação.

Através da forma formosa
da disforme fôrma
da alomorfia da metáfora
crio e recrio
o empírico
o impuro
o imperene.

Até o nada
me alucina
me fertiliza.
Niilismo lírico
da existência metamórfica
que me desgasta
e se engasta na palavra.

Essa palavra que atravessa
o corpo silente
e explode e se expande
como o cosmo
metaformoso.

Fonte: Cereja, W. R. & Magalhães, T. C. 2005. Português: Linguagens, 5ª edição. SP, Atual.

13 setembro 2011

A flauta mágica

Ingmar Bergman

Em meu filme A hora do lobo, eu tentei criar a cena [de A flauta mágica] que mais profundamente me comoveu. Tamino é deixado só no jardim do palácio. Ele grita: “Oh, noite escura! Quando desaparecerás? Quando encontrarei a luz na escuridão?” O coro responde pianissimo do interior do templo: “Breve, breve, ou nunca mais!” Tamino: “Breve? Breve? Ou nunca mais? Criaturas ocultas, dai-me vossa resposta. Pamina ainda está viva?” O coro responde, de longe: “Pamina, Pamina está viva.”

Esses 12 compassos envolvem duas questões dos limites da vida, mas também duas respostas. Quando Mozart escreveu sua ópera, ele já estava doente, o espectro da morte já o tocava. Em um momento de impaciente desespero, ele grita: “Oh noite escura! Quando desaparecerás?...” E o coro responde ambiguamente: “Breve, breve, ou nunca mais.” Mozart, mortalmente doente, grita seu questionamento pela escuridão. E dessa mesma escuridão ele responde suas próprias perguntas – ou será que ele recebe uma resposta?

E então a outra pergunta: “Pamina ainda vive?” A música transforma a simples pergunta do texto na maior de todas as perguntas: “O Amor ainda vive? O Amor é real?” A resposta vem, tremulante, porém esperançosa... Pa-mi-na ainda vive. O Amor existe. O Amor é real no mundo dos seres humanos.

12 setembro 2011

Quatro anos e onze meses no ar

F. Ponce de León

Nesta segunda-feira, 12/9, o Poesia contra a guerra completa quatro anos e onze meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 144.245 visitas foram registradas ao longo desse período.

Desde o balanço mensal anterior – Quatro anos e dez meses no ar – foram aqui publicados textos dos seguintes autores: Charles, Dirk Rafaelsz Camphuysen, Francesco Santoianni, Furnandes Albaralhão, Gil de Carvalho, Gustavo Teixeira, Lee Smolin, Lisa Bresner, Peter Buchka e Philip Zimbardo. Além de outros autores que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: E. Phillips Fox, Ernst Ludwig Kirchner e Telemaco Signorini.

11 setembro 2011

Olhos não se compram

Peter Buchka

1.
Por três quartos de século, o cinema viveu dos práticos. Foram eles que abriram novas possibilidades de expressão nesse campo, ao encontrarem diferentes soluções para o que precisava ser mostrado. Tratando-se de um novo meio de comunicação, cada geração tinha forçosamente que se apoiar nas conquistas de seus predecessores; e decerto não foi por acaso que a maioria dos que fizeram carreira começou bem embaixo no sistema hierárquico dos estúdios. Aprender significava observar o trabalho dos outros, imitá-lo e só então tentar um avanço. A indústria cinematográfica só foi perder esse caráter de fundo artesanal relativamente tarde – quando quase todas as conquistas técnicas essências do cinema já tinham sido desenvolvidas. Daí para frente, a partir mais ou menos de 1960, as inovações importantes não resultaram do trabalho nos estúdios, mas sim da reflexão sobre o meio de comunicação cinematográfico. Os novos cineastas – e este nome, adotado por eles em lugar de ‘diretor’, sugere uma certa má consciência – não eram mais os ajudantes de eletricista ou titulistas de outrora; eram críticos, historiadores do cinema e, cada vez mais, estudantes universitários de faculdades ou departamentos de cinema. Esses novos diretores chegaram à realização de filmes, não através do trabalho – a princípio, subalterno – em filmes, mas vendo filmes.
[...]

Fonte: Buchka, P. 1987 [1983]. Olhos não se compram: Wim Wenders e seus filmes. SP, Companhia das Letras.

09 setembro 2011

Mal sicreto

Furnandes Albaralhão

S’a cólera que põe danada a gente,
distróe a paz da bida disijada,
tudo que nos vilisca intiriormente
suvisse á nossa cara, qu’istupada!...

Si si pudesse, a iálma padicente,
bêre por trás de muita guergalhada,
canta gente a se rire vestamente,
que era muito milhóre estar calada!

Canta gente só ri p’ra disfarçare
um turco á porta que lhe bem cuvráre
a quemisa, a ciloira, a mâia, u cinto...

Cantos ha nesse mundo a tres por dois,
que tendo á janta só cumido arroz,
arrotam p’ru, laitão e binho tinto!

Fonte: Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 6. SP, Cultrix & Edusp. ‘Furnandes Albaralhão’ é pseudônimo de Horácio Campos.

06 setembro 2011

Mulheres nuas


Ernst Ludwig Kirchner (1880-1938). Nackte Frauen auf Waldwiese. 1928.

Fonte de foto: Wikipedia.

04 setembro 2011

A libélula

Gustavo Teixeira

Entre os juncos das bordas da lagoa
Onde bebem a fera e a pomba mansa,
Voa a leve libélula, revoa,
E sutilmente sobre as águas dança.

Sem rumo, sobe e desce, gira à toa,
Fixa-se no ar e – alada flecha – avança.
Só quando a terra de astros se coroa,
A dançarina alígera descansa.

Num flexível caniço que a aura entorta
E oscila ao choque de uma folha morta,
Dorme, a sonhar com o lago, que se estrela.

Assim que a noite o lábaro desfralda,
O pirilampo acende em torno dela
Pequeninas auroras de esmeralda...

Fonte: Lenko, K. & Papavero, N. 1979. Insetos no folclore. SP, Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas.

02 setembro 2011

Um sonho para todas as noites

Lisa Bresner

1.
Tang está deitado na esteira. No seu quarto, três varetas de incenso estão acesas. Ele não consegue dormir. Está muito triste porque não sabe sonhar. As horas passam, a lua vai alta no céu.

Tang fecha os olhos. Alguns segundos. Adormece.

Enxerga a Grande Muralha. Sem hesitar, sobe a escadaria.

Um guarda vestido de plumas e folhas lhe pergunta:

– Olá, Tang, quer ir até o fim da Grande Muralha?

– Quero – responde Tang –, mas ela é comprida demais. O que vou encontrar no fim?

O guarda explica:

– No fim da Grande Muralha você vai encontrar o seu sonho para todas as noites. Mas, antes, tem que aprender as palavras secretas do sonho.

– Qual é a primeira palavra? –, impacienta-se Tang. – Um sonho para todas as noites, que felicidade!

Diz o guarda:

– As garças e os dragões, as fênix e os gansos selvagens, todos eles sabem voar.

O guarda vestido de plumas e folhas desenha então a palavra voar na mão de Tang:

– Não a esqueça pelo caminho!
[...]

Fonte: Bresner, L. 2004 [1999]. Um sonho para todas as noites. SP, Companhia das Letrinhas.

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