31 agosto 2013

Uma Mosca zumbiu – quando eu morria

Emily Dickinson 

Uma Mosca zumbiu – quando eu morria –
Dentro do Quarto o Silêncio
Era o Silêncio de uma Tempestade
Entre um e outro Arquejar –

Os Olhos em redor – a custo enxutos –
E os Fôlegos já contidos
Para testemunhar o último Assalto –
Quando a Rainha chegar –

Desfiz-me de Lembranças – a Renúncia
Firmei do que em mim podia
Alienar – e então é que me chega
Essa Mosca a se meter –

Com seu Zumbido Azul trôpego – incerto –
Entre mim e a luz – e é quando
A Janela caiu – e eu desse jeito
Não pude ver – para ver – 

Fonte: Dickinson, E. 2006. Alguns poemas. SP, Iluminuras. Poema publicado em livro em 1896.

29 agosto 2013

Idílica estudantil

Alex Polari 

Nossa geração teve pouco tempo
começou pelo fim
mas foi bela a nossa procura
ah! moça, como foi bela a nossa procura
mesmo com tanta ilusão perdida
quebrada,
mesmo com tanto caco de sonho
onde até hoje
a gente se corta.

Fonte: Cereja, W. R. & Magalhães, T. C. 1995. Literatura brasileira. SP, Atual. Poema – cujo título, a rigor, seria ‘Idílica estudantil – III’ – publicado em livro em 1978.

27 agosto 2013

Mãe e filho

Tobias Barreto

Menino, que ao céu revoa
Levado por mão de santa,
Junto a Deus a luz o espanta,
Quer chorar e Deus sorri...
Neste abandono celeste,
No vago de uma lembrança,
Mãe!... balbucia a criança,
E um anjo canta: ei-la aqui!
Súbito o triste inocente
Se lança meigo e choroso
No branco seio amoroso
Que ali outra mão conduz;
A mãe e o filho abraçados
Se prostram na imensa alfombra,
Ela... com medo da sombra
Ele... com medo da luz!

Fonte: Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 4. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em livro em 1881.

25 agosto 2013

Natureza morta com maçãs


Émile Bernard (1868-1941). Nature morte aux pommes. 1941.

Fonte da foto: Wikipedia.

23 agosto 2013

Por que choramos lágrimas?

Ben Patrusky

Seu cachorro morreu. Você venceu o concurso de beleza. Você se separa de alguém que ama. Sua filha se casa. Você perde seu emprego. Seu melhor amigo sofre um acidente grave.

Como você enfrenta esses episódios estressantes? Na certa você chora. Verter lágrimas parece trazer uma liberação emocional incrível. Por quê? Ninguém sabe ao certo.

Os seres humanos aparentemente vertem lágrimas de todos os tipos. Existem as lágrimas que secretamos o tempo todo, aquelas que ajudam a manter nossos olhos adequadamente úmidos. E também as lágrimas de olhos irritados, do tipo que vertemos quando descascamos cebolas ou enfrentamos poluição. Finalmente, existem as lágrimas emocionais, que vertemos quando reagimos a pesar, alegria, frustração ou outros estresses.
[...]

Fonte: Leigh, J. & Savold, D., orgs. 1991 [1988]. O dia em que o raio correu atrás da dona-de-casa... e outros mistérios da ciência. SP, Nobel.

21 agosto 2013

Harpa esquisita


Dói-te a festa feliz da verdade da vida...
Tanges da harpa, em teu sonho, almas ou cordas, cantas,
Bóiam-te as notas no ar, a asa no Azul diluída
E, assombrados, reptis – homens, não! tu levantas!

E apupilam-te a fronte as mil pedras agudas
De ódios e ódios a olhar-te... E és um rei que as avista,
No halo, de Amor, que tens! se em colar as transmudas,
Vais – um dervixe persa, o manto azul – Artista!

Inda olhar adormido abre, e é de ocre, e avermelha!...
Vem colar-te ao colar... e, oh! tua harpa esquisita
Plange... flora a zumbir, minúscula, que imita
A abelheira da Dor, em centelha e centelha.

E é a sombra... E o instrumento, a gemer, iluminado,
Como que à Noite estrela um núbio corvo... E lindo
(Inda que as asas tens não no terás ao lado)
Por que os pétalos d’ouro, a haste de prata, abrindo,

Um lírio de ouro se alça?... Os passos voam-te, pelas
Ribas... Oh! que ilusões da flor, que tantaliza!
Sobe a flor? Sobes tu e a alma nas pedras pisa?...
Pairas... Em frente, o mar, polvos de luz – estrelas...

Pairas... e o busto a arfar – longe, vela sem norte.
Negro o céu desestrela, o seio arqueando: escuta.
No amoroso oboé solfeja um vento forte
E, alta, em surdo ressôo, a onda betúmea e bruta.

A ânsia do mar, lá vem, esfrola-se na areia...
Seu líquido cachimbo é mágoa acesa, e fuma!
E chamas a onda: “irmã”. E em fósforo incendeia
Na praia a onda do mar, ri com dentes de espuma.

De ametista, em teu sonho, uma antiga cratera
Mal te embebe – alegria! – alvos dedos de frio,
Eis se te emperla o rosto e a prantear vês, sombrio,
A onda crescer, rajar-se em brutal besta-fera!

Olhas... E, soluçoso, à musica das mágoas
Amedulas o Mar e amedulas a Terra!
A sombra aclara... E é ver a dança verde de águas
E arvoredos dançando ao coruto da serra!

Gemes... Dedando o Azul as magras mãos dos astros
Somem, luzindo... Ao longe, esqueleta uma ruína
Em teu sonho a enervar, argentina, argentina...
De ilusões, no horizonte, ossos brancos... são mastros!

Quentes estrias à alma, à frialgem, nas cousas...
Que bom morrer! manhã, luz, remada sonora...
Pousas um dedo níveo às níveas cordas, pousas
E és náufrago de ti, a harpa caída, agora.

Ah! os homens percorre um frêmito. Num choro...
Move oceânica a espécie, amorosa, amorosa!
Mais que um dervixe, és deus, que morre, a irradiosa
Glorificação de ouro e o sol de ouro... à paz de ouro.

Fonte: Ricieri, F., org. 2008. Antologia da poesia simbolista e decadente brasileira. SP, Ibep.

19 agosto 2013

As plantas e a água

James F. Sutcliffe

A disponibilidade de água no ambiente exerce um importante efeito na distribuição das plantas não só através do mundo [...] como também no sentido mais restrito. Plantas adaptadas a viver em locais secos não podem sobreviver por muito tempo em ambientes úmidos e vice-versa. As espécies são classificadas em quatro grupos, com base na quantidade de água disponível para elas, e cada grupo é caracterizado por uma combinação de adaptações estruturais ao seu ambiente.

Hidrófitas crescem total ou parcialmente submersas na água. [...]

A perda de água normalmente não é problema para as hidrófitas e não há cutícula em desenvolvimento nos órgãos submersos ou na superfície inferior das folhas flutuantes. A superfície superior, entretanto, é fortemente cutinizada, o que ajuda a prevenir a supersaturação, e as folhas emergentes têm ainda estômatos funcionais que controlam a transpiração.
[...]

Higrófitas [..] são plantas terrestres de ambientes úmidos, onde o ar é muito úmido e o solo é permanentemente saturado de água. Tais hábitats são geralmente sombreados e, assim sendo, as higrófitas são plantas adaptadas a fotossintetizar eficientemente em baixas intensidades luminosas. Elas comumente têm uma grande área superficial em relação ao volume, e as folhas freqüentemente têm apenas uma camada de células de espessura. Há pouco controle da perda de água, e o conteúdo de água é controlado em grande parte pela umidade do ar [...].
[...]

Mesófitas são plantas que normalmente crescem em solo bem drenado e cujas folhas ficam expostas a ar moderadamente seco. A maioria das espécies cultivadas e muitas das plantas nativas de regiões tropicais e temperadas estão enquadradas nesta categoria. Elas têm cutícula impermeável e regulam a perda de água pelo controle da abertura dos estômatos [...]. Nas mesófitas os estômatos freqüentemente se fecham por um período, na metade do dia, quando as condições são geralmente mais favoráveis para a evaporação, e também à noite, quando a fotossíntese pára e a penetração de CO2 não é necessária. Como as mesófitas têm [de] substituir grandes quantidades de água transpirada pelas folhas, elas possuem um sistema radicular extenso e xilema bem desenvolvido. [...]

Xerófitas ocorrem principalmente nos desertos, nos [campos] secos e nos lugares rochosos onde a água é geralmente escassa. Essas plantas poderiam, algumas vezes, se desenvolver melhor em ambiente úmido que no seco, se fossem protegidas contra a competição das mesófitas. Sua sobrevivência sob condições secas depende de um certo número de adaptações, incluindo:

1) Um extenso sistema radicular que penetre ampla e profundamente no solo para obter a água disponível. [...]

2) A água pode ser armazenada em raízes, caules ou folhas suculentas para ser usada durante períodos de seca intensa. [..]

3) Em muitas xerófitas, inclusive nos cactos, as folhas são pequenas, algumas vezes reduzidas a simples escamas e o principal órgão fotossintetizante é o caule. [...]

4) Algumas xerófitas, especialmente monocotiledôneas, perdem suas folhas e outras partes aéreas em períodos de seca severa e sobrevivem por meio de bulbos subterrâneos. [...]

5) A cutícula das xerófitas é freqüentemente mais fina que a das mesófitas, mas sua impermeabilidade à água depende principalmente de sua composição, que inclui uma alta proporção de cutina e outras ceras. [...]

6) A transpiração é também reduzida nas xerófitas pelo número, disposição e modo de função dos estômatos. [...]
[...]

Fonte: Sutcliffe, J. F. 1980. As plantas e a água. SP, EPU & Edusp.

17 agosto 2013

Campo maduro

Daniel Varujan

A minha terra é dourada...
Parece chama.
O grão se queima
e não se consome.

A minha terra é dourada...
O céu é de fogo,
o solo é imóvel
sob as estrelas.

A minha terra é dourada...
As espigas em quatro filas
revestiram-se
de sombra e sol.

A minha terra é dourada...
Passam como relâmpagos,
no meio das espigas,
as abelhas e os zangões.

A minha terra é dourada...
Do mar, das ondas de ouro
voa o pardal
levado pelo vento.

Dorme, terra dourada,
dorme, campo maduro,
colherei o teu ouro
com a foice de prata. 

Fonte: Freire, C. 2004. Babel de poemas: uma antologia multilíngüe. Porto Alegre, L&PM. Poema publicado em livro em 1921.

15 agosto 2013

Summer breeze

Jim Seals

See the curtains hangin’ in the window
In the evenin’ on a Friday night
Little light is shinin’ through the window
Lets me know everything's alright

Summer breeze, makes me feel fine
Blowing through the jasmine in my mind

See the paper layin’ on the sidewalk
A little music from the house next door
So I walked on up to the doorstep
Through the screen and across the floor

Summer breeze (...)

Sweet days of summer, the jasmines in bloom
July is dressed up and playing her tune
And I come home from a hard day’s work
And you’re waiting there, not a care in the world

See the smile awaitin’ in the kitchen
Food cookin’ in the plates for two
Feel the arms that reach out to hold me
In the evening when the day is through

Summer breeze (...)

Fonte: DVD do filme O rei da Califórnia (King of California, 2007); canção originalmente gravada em 1972.

13 agosto 2013

A ponte de Grez


Robert Vonnoh (1858-1933). The bridge at Grez. 1890. 

Fonte da foto: The Athenaeum.

12 agosto 2013

Seis anos e dez meses no ar

F. Ponce de León

Nesta segunda-feira, 12/8, o Poesia contra a guerra completa seis anos e dez meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 215.604 visitas foram registradas ao longo desse período.

Desde o balanço mensal anterior – Oitenta e um meses no ar – foram aqui publicados pela primeira vez textos dos seguintes autores: Eduardo Galeano, Fiódor Dostoiévski, K. H. de Josselin de Jong, Lara de Lemos, Manoel Jairo Bezerra, Penrhyn W. Coussens, Richard Wrangham, Rosalía de Castro e T. Lobsang Rampa. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Elizabeth Shippen Green, Jessie Willcox Smith e Raimundo de Madrazo y Garreta.

10 agosto 2013

Vila Rica de Ouro Preto

Eduardo Galeano

A febre de ouro, que continua impondo a morte e a escravidão aos indígenas da Amazônia, não é nova no Brasil; muito menos seus estragos.
[...]

“Aqui o ouro era mato”, diz, agora, o mendigo, e seu olhar passeia pelas torres das igrejas. “Tinha ouro nas calçadas, crescia como pasto.” Agora ele tem 75 anos e se considera uma tradição de Mariana (Ribeirão do Carmo), a pequena cidade mineira próxima a Ouro Preto, que se conserva, como Ouro Preto, paralisada no tempo. “A morte é certa, a hora é incerta. Cada um tem seu tempo marcado”, me diz o mendigo. Cospe sobre a escada de pedra e sacode a cabeça: “Não sabiam onde pôr o dinheiro e por isso faziam uma igreja ao lado da outra.”
[...]

Ao longo do século 18, a produção brasileira do cobiçado minério superou o volume total de ouro que a Espanha tinha extraído de suas colônias durante os dois séculos anteriores. Choviam os aventureiros e os caçadores de fortuna. O Brasil tinha 300 mil habitantes em 1700; um século depois, no final dos anos do ouro, a população tinha-se multiplicado onze vezes. Não menos de 300 mil portugueses emigraram para o Brasil durante o século 18, “um contingente maior de população... do que a Espanha levou a todas suas colônias da América”. Estima-se em uns 10 milhões o total de negros escravos introduzidos desde a África, a partir da conquista do Brasil até a abolição da escravatura: apesar de não se dispor de cifras exatas para o século 18, deve-se ter em conta que o ciclo do ouro absorveu mão-de-obra escrava em proporções enormes.

[...] No centro dinâmico da florescente economia mineira, brotaram as cidades, acampamentos nascidos do boom e bruscamente ampliados na vertigem da riqueza fácil, “santuários para criminosos, vagabundos e malfeitores” – segundo as educadas palavras de uma autoridade colonial da época. A Vila Rica de Ouro Preto tinha conquistado categoria de cidade em 1711; nascida da avalanche de mineiros, era a quintessência da civilização do ouro. Simão Ferreira Machado a descrevia, 23 anos depois, e dizia que o poder dos comerciantes de Ouro Preto excedia incomparavelmente ao dos mais florescentes mercadores de Lisboa. “Para aqui, como para um porto, se dirigem e são recolhidas na casa real da moeda as grandiosas somas de ouro de todas as minas. Aqui vivem os homens mais bem educados, tanto os leigos como os clérigos. Este é o assento de toda a nobreza e força dos militares. Esta é, em virtude de sua posição natural, a cabeça da América íntegra; e pelo poder de suas riquezas, a pérola preciosa do Brasil.Outro escritor da época, Francisco Tavares de Brito, definia Ouro Preto em 1732 como “a Potosí de ouro”.
[...]

Fonte: Galeano, E. 1979 [1976]. As veias abertas da América Latina, 6ª edição. RJ, Paz & Terra.

08 agosto 2013

O Eu espontâneo


O Eu espontâneo, a Natureza,
O dia amoroso, o sol engastado, o amigo com quem estou feliz,
O braço de meu amigo apoiado, preguiçosamente, sobre o meu ombro,
A encosta embranquecida pelas flores da sorveira brava,
A mesma altura do outono, os matizes de escarlate, amarelo, castanho, púrpura e verde claro e escuro,
A colcha rica da grama, os animais, os pássaros, a margem desaprumada e isolada, as maçãs selvagens, os cristais de rocha,
Os belos fragmentos gotejantes, a lista negligente de um após o outro quando os chamo ou penso sobre eles,
Os poemas reais (o que chamamos poemas sendo apenas imagens),
Os poemas da intimidade da noite, e de homens como eu,
Este poema desfalecendo, tímido e incógnito, que carrego sempre, e que todos os homens carregam,
(Que tu conheças, de uma vez por todas, o propósito declarado: onde quer que haja homens como eu, estão nossos poemas masculinos, vigorosos e secretos.)
Pensamentos de amor, fluídos de amor, cheiro de amor, oferta de amor, trepadeiras de amor, seiva trepadeira,
Braços e mãos de amor, lábios de amor, dedão fálico de amor, seios de amor, barrigas úmidas e pressionadas uma na outra com amor,
Terra de casto amor, vida que é apenas a vida após o amor,
O corpo de meu amor, o corpo da mulher que amo, o corpo do homem, o corpo da terra,
Ares macios da manhã que sopram de sudoeste,
A abelha selvagem, peluda, que zune e expressa os seus anseios subindo e descendo, que aborda a moça flor plenamente e curva-se sobre ela com pernas firmes e amorosas, toma a sua vontade de possuí-la, e se aperta trêmula e com força até estar inteiramente saciada;
A floresta orvalhada através das primeiras horas do dia,
Dois que dormem à noite, deitados próximos um do outro, um com o braço oblíquo atravessado em torno e abaixo da cintura do outro,
O perfume das maçãs, aromas de ramonas esmagadas, menta, casca de vidoeiro,
As saudades do menino, o brilho e a tensão no momento em que ele me confessa o teor de seus sonhos,
A folha seca girando em seu redemoinho e caindo paralisada e satisfeita no chão,
Os espinhos disformes que se avistam, as pessoas, os objetos, com os quais me aguilhoam,
O espinho furador de mim mesmo, aguilhoando-me tanto quanto se pode aguilhoar alguém,
Os irmãos sensíveis, esféricos, subpostos, de quem apenas os tentáculos privilegiados podem ser íntimos no lugar em que estão,
O curioso vagante tem a sua mão vagando pelo corpo inteiro, a tímida retirada da carne onde os dedos verdadeiramente param e cingem a si mesmos,
O líquido límpido dentro do jovem homem.
A corrosão irritada, tão reflexiva e tão dolorosa,
A tormenta, a maré irritável que não se acomodará,
A semelhança dos mesmos eu sinto, a semelhança do mesmo nos outros,
O jovem homem que se excita e se excita, a jovem mulher que se excita e se excita,
O jovem homem que desperta no meio da noite, a mão quente procurando reprimir aquilo que o dominaria,
A noite amorosa do místico, a estranha angústia quase bem-vinda, as visões, o suor,
O pulso que bate pela palma das mãos, cujos dedos tremulam envolventes, o rapaz que tem o rosto vermelho, envergonhado, nervoso;
A salmoura sobre mim vem do mar, meu amante, quando me deito desnudo e ardente,
A folia dos bebês gêmeos que engatinham na grama sob o sol, a mãe em momento algum desvia seu olhar vigilante sobre ambos,
O tronco da nogueira, as cascas das nozes e as nozes que amadurecem ou já maduras, as nozes graúdas,
A continência dos vegetais, dos pássaros, dos animais,
Minha vileza conseqüente; eu deixaria esquivar-me ou achar-me indecente, enquanto os pássaros e os animais nunca se esconderam nem jamais se acharam indecentes,
A grande castidade da paternidade, para equiparar-me à grande castidade da maternidade,
O voto da procriação eu já fiz, minhas filhas adâmicas e novas,
A cobiça que me devora dia e noite com fome roedora, até que eu me enjoe daquilo com que hei de produzir meninos para me substituir quando eu passar,
O alívio por inteiro, o repouso, o contentamento,
E esse bando arrancado de mim ao acaso,
Já cumpriu sua missão – eu o lanço sem cuidado para cair em qualquer parte.

Fonte: Whitman, W. 2006. Folhas de relva. SP, Martin Claret. Poema publicado em livro em 1856.

06 agosto 2013

Vida

Lara de Lemos

O que te peço
é simples, leve
– um dia de sol, de paz,
de dor nenhuma,
breve.

O que te peço
é tolo – uma ave,
um menino, um assovio,
um rápido voar
sobre o vivido.

O que te peço
é pouco – não o amanhã,
nem o ontem, nem o acesso
à glória
e sua morada.

Peço um hiato
– instante raro –
entre o claro do poema
e o nosso
nada.

Fonte: Nejar, C. 2011. História da literatura brasileira. SP, Leya.

04 agosto 2013

Amor e alegria


Elizabeth Shippen Green (1871-1954). Life was made for love and cheer. 1904.

Fonte da foto: Wikipedia.

02 agosto 2013

Memórias do subsolo

Fiódor Dostoiévski

1. O subsolo

I.
Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso.) Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva. Certamente não compreendeis isto. Ora, eu compreendo. Naturalmente não vos saberei explicar a quem exatamente farei mal, no presente caso, com a minha raiva; sei muito bem que não estarei a “pregar peças” nos médicos pelo fato de não me tratar com eles; sou o primeiro a reconhecer que, com tudo isto, só me prejudicarei a mim mesmo e a mais ninguém. Mas, apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais.

Já faz muito tempo que vivo assim: uns vinte anos. Tenho quarenta, agora. Já estive empregado, atualmente não. Fui um funcionário maldoso, grosseiro, e encontrava prazer nisso. Não aceitava gratificações; no entanto, devia premiar-me ao menos desse modo. (É um mau gracejo, mas não vou riscá-lo. Escrevi-o pensando que sairia muito espirituoso; mas agora, percebendo que apenas pretendi assumir uma atitude arrogante e ignóbil, não o riscarei, de propósito!) Quando os solicitantes, com pedidos de informações, se acercavam da mesa junto à qual me sentava, eu lhes respondia com um ranger de dentes, e sentia um prazer insaciável quando conseguia magoar alguém. Conseguia isto quase sempre. Na maior parte dos casos, aparecia gente tímida: era natural, em se tratando de solicitantes. Mas, dentre os que se trajavam com presunção, eu não suportava particularmente certo oficial. Ele teimava em não se sujeitar e tilintava o sabre de modo abominável. Por causa daquele sabre, guerreamos um ano e meio. Finalmente, venci. Ele deixou de tilintá-lo. Aliás, isso aconteceu ainda na minha mocidade. Mas sabeis, senhores, em que consistia o ponto principal da minha raiva? O caso todo, a maior ignomínia, consistia justamente em que, a todo momento, mesmo no instante do meu mais intenso rancor, eu tinha consciência, e de modo vergonhoso, de que não era uma pessoa má, nem mesmo enraivecida; que apenas assustava passarinhos em vão e me divertia com isso. Minha boca espumava, mas, se alguém me trouxesse alguma bonequinha, me desse chazinho com açúcar, é possível que me acalmasse. Ficaria até comovido do fundo da alma, embora, certamente, depois rangesse os dentes para mim mesmo e, de vergonha, sofresse de insônia por alguns meses. É hábito meu ser assim.
[...]

Fonte: Dostoiévski, F. 2000 [1864]. Memórias do subsolo. SP, Editora 34.

eXTReMe Tracker