10 abril 2014

Um pastor

Manuel de Araújo Porto-Alegre

Toca a hora; silêncio! A hora soa
Em que o globo inflamado,
Que o dia à terra mostra,
Do etéreo oceano ao fundo rola,
E das celestes vagas já levanta
As gotas luminosas que borrifam
O vasto firmamento!
Salve, estrelante noite,
Que do berço da aurora ressurgindo
De um manto adamantino te apavonas
Nas cerúleas campinas!
Vagai na imensidade, ardentes círios,
Que só a imensidade ora me encanta.
Mesquinha à mente a terra me parece.
Místicos sonhos, célica harmonia,
Adejai vossas asas,
Ressoai no infinito;
Sombras de amor, passai, passai ligeiras,
Dançai, e repeti em muda língua
O Nome que idolatro.

Como rápida a mente rola e paira
Sobre o mar do silêncio!
Como brilha nas trevas
Do insólito esplendor o simulacro
Que da imaginação ardido surge
Em ideais eflúvios,
E mágico volteja, vai-se, e volta!
Mãe da contemplação, da paz, ó noite!
Ah! quão ditoso sinto o movimento
Que o coração agita a par dos quadros
Que desenrola a mão de alma saudade!
Do porvir áureos paços me franqueias,
Que o cinzel da esperança, a fantasia
Com místico artifício adorna, e doura!
Doce esperança, espectro luminoso,
Coroado de estrelas caroáveis,
Tu no peito me escreves
O nome que idolatro.

Tua imagem só vejo em toda parte:
Do límpido regato a nívea espuma
Na corrente descreve em alvas letras
Sobre um fundo de azul teu caro nome.
Dulçoroso murmúrio é o teu sorriso,
E o teu olhar um raio de ventura.
A flor que cede ao zéfiro, e balança,
Retrata o teu donaire gracioso;
E o perfume que exalam suas pétalas
Teus ditos inocentes assemelha.
A saudosa elegia
Que entoa o rouxinol entre mil flores,
É o hino de ternura da tua alma!
Tua imagem, anteposta à Natureza,
Diviniza, embalsama-me a existência.
Do rio a crespa vaga que desliza,
Minha doce esperança representa,
Correndo de hora em hora ’té que chegue
Ao mar delicioso, em que vogando
Solte as velas da vida, e feliz frua
De teus lábios o hálito de rosas;
E abraçado me entregues...
Cessai, sonhos de amor! vinde a meus lábios
Em suspiros morrer misteriosos.
Fere, lira amorosa,
Entoa co’o meu canto em puro acordo
O nome que idolatro.

Invoquei, minha bela, a eternidade;
Entre os Anjos pairar almejo agora.
Meu amor já desdenha a terra nossa;
Só posso refrescar a calma intensa
Entre os lúcidos astros,
Eflúvios, que levanta do universo
A eviterna torrente.
A noite eu invoquei, para nas trevas
Do silêncio ocultar as divas cenas,
Que veemente paixão me volve n’alma.
Amor eu invoquei, silfos sidéreos,
Diáfanas visões, que em ronda aérea
Me envolvem de almos sonhos.
Invoquei-te, esperança, a ti me volvo,
Ente misterioso, já que longe...
Mas que digo?! jamais longe não podes
Viver do teu amante.
Mais próxima que a luz e ar que respiro,
Eu te guardo no adito de minha alma!
Invoco ora saudoso
O Anjo consolador, Anjo do vate,
Que desdobra em minha alma as asas ígneas
Para escrever no céu entre as estrelas
O nome que idolatro.

Fonte (última estrofe): Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 2. SP, Cultrix & Edusp. O trecho acima – publicado com os dizeres ‘(cantando e tecendo uma coroa de rosas)’ – corresponde a um dos cantos que integram um poema mais extenso, intitulado ‘A voz da Natureza’ e publicado em livro em 1863.

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