25 setembro 2014

Compromisso ético

Mauro Santayana

Éramos todos jovens e acreditávamos que um bom jornal poderia mudar o mundo. Talvez nos visitasse aquela convicção, registrada por Fernando Pessoa, de alguém que se senta à mesa do café, redige um artigo de fundo para o Times, certo de que mudaria o mundo. E não é que o mundo mudou, mesmo? – conclui o poeta. Estou certo de que, um pouquinho que seja, mudamos o mundo, porque mudamos um pouco a sociedade de Belo Horizonte e influímos na vida política nacional daqueles anos.

José Maria e Euro Luís Arantes gostavam de narrar o momento em que o jornal nasceu. Estavam os dois, redatores do então Informador Comercial (hoje Diário do Comércio) do exemplar homem de imprensa que foi José Costa, na sacada da redação, assistindo a um protesto dos estudantes contra o aumento das entradas de cinema, que acabou em quebra-quebra. A polícia reprimia com a violência habitual os manifestantes. “Belo Horizonte está precisando de um jornal independente” – disse um ao outro. E nasceu o Binômio.

Companheiro de José Maria na reportagem do Diário de Minas, acompanhei o Binômio desde os seus primeiros tempos, e com ele colaborei. Mais tarde, o jornal crescido, essa colaboração se tornou mais densa, até os episódios conhecidos que levaram ao empastelamento do jornal, uma espécie de aviso para a grande noite que sofreria o Brasil.

Daquela experiência ficou o registro de uma teimosia ética. Não éramos, os que redigíamos o jornal, moralistas hipócritas. Todos tínhamos os nossos humaníssimos defeitos. Mas, do ponto de vista do interesse coletivo, rigorosa era a ética em que nos movíamos. Se os riscos maiores cabiam a José Maria e ao Euro, sempre ameaçados de agressão e de morte, todos nós nos sentíamos no mesmo barco e empurrados pela mesma coragem. Era quase com certa volúpia – como a dos que amam a velocidade e os esportes violentos – que recebíamos as ameaças e que nos preparávamos para o provável confronto.

O jornal trouxe certo choque à acomodada sociedade de Belo Horizonte dos anos 50. Havia coisas de que todos sabiam, mas ninguém publicava. O semanário começou a tocar nos assuntos proibidos, e a ganhar a simpatia da classe média e do povão. A tiragem crescia, obrigando os editores a buscar oficinas do Rio de Janeiro – porque as que podiam rodar o semanário na capital a isso se recusavam – a fim de acompanhar as exigências da circulação. A força política do Binômio se revelou nas eleições parlamentares de 1959, quando Euro Luís Arantes se elegeu deputado estadual com a maior votação relativa já recebida no universo eleitoral de Belo Horizonte.

A violência interrompeu a vida do jornal. Em seguida, com o golpe militar, muitos de seus redatores tiveram que partir para o exílio. Um deles, Fernando Gabeira, teve grande notoriedade, ao participar da luta armada e do seqüestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil. O que teria ocorrido, se não houvesse a violência e o golpe? Talvez, com a idade, o Binômio se tornasse um bem-comportado diário, mas é difícil imaginá-lo assim. É certo que a sua linguagem havia se tornado mais comedida, o seu estilo mais sério, se comparado ao dos primeiros números, quando abusava do humor escancarado. Isso não o tornou menos temido e menos agressivo; ao contrário, como os fatos vieram a demonstrar. Provavelmente o jornal encontraria, com o tempo, o seu ponto de maturidade, sem que perdesse o compromisso ético de seus fundadores.

Fonte: Rabêlo, J. M. 1997. Binômio: edição histórica. BH, Armazém de Idéias & Barlavento Grupo Editorial.

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