30 junho 2015

Anônima juventude

Afonso Carlos Marques dos Santos

meus lábios
e minhas mãos
ocultam ainda a presença
de teu corpo
firme e ágil
na vertigem
destes dezenove anos
que me seduzem
e me embriagam
e me resgatam
para a vida
enquanto partes
como o tempo
que nos separa
vertiginoso e efêmero
levando o teu olhar vadio
a tua alegria
os teus ruídos
e o teu silêncio

meu desejo
e minha emoção
abrigados
na noite e na solidão
viajam na tua imagem
e nos teus gestos
recuperando
nesta liberdade
anônima e secreta
a tua juventude

Fonte: Kuri et al. 2004. AdVersos. RJ, Atlântica Editora.

28 junho 2015

Vale de Aosta


John Brett (1831-1902). The Val d’Aosta. 1858.

Fonte da foto: Wikipedia.

26 junho 2015

Desígnio

Robert Frost

Encontrei uma aranha eriçada, grande e branca,
Sobre um cura-tudo branco, segurando uma mariposa
Como se fosse um pedaço rígido de branco tecido acetinado –
Uma combinação de sinais de morte e geada
Misturados e prontos para começar bem a manhã,
Como os ingredientes do caldo de uma bruxa –
Uma aranha coberta de neve, uma flor semelhante à espuma,
E asas mortas, sustidas como uma pipa de papel.

Por que aquela flor teve de ser branca,
O cura-tudo de beira de estrada, azul e inocente?
O que levou até aquela altura a aranha de mesma cor
E depois, no meio da noite, conduziu para lá a branca mariposa?
O que senão o desígnio da aterradora escuridão? –
Se é que o desígnio influi numa coisa tão pequena.

Fonte: Gould, S. J. 1990. Vida maravilhosa. SP, Companhia das Letras. Poema publicado em livro em 1936.

24 junho 2015

Cântico do calvário

Fagundes Varela

Eras na vida a pomba predileta
Que sobre um mar de angústias conduzia
O ramo da esperança. – Eras a estrela
Que entre as névoas do inverno cintilava
Apontando o caminho ao pegureiro.
Eras a messe de um dourado estio.

Eras o idílio de um amor sublime.
Eras a glória, – a inspiração, – a pátria,
O porvir de teu pai! – Ah! no entanto,
Pomba, – varou-te a flecha do destino!
Astro, – engoliu-te o temporal do norte!
Teto, caíste! – Crença, já não vives!

Correi, correi, oh! lágrimas saudosas,
Legado acerbo da ventura extinta,
Dúbios archotes que a tremer clareiam
A lousa fria de um sonhar que é morto!
Correi! Um dia vos verei mais belas
Que os diamantes de Ofir e de Golconda
Fulgurar na coroa de martírios
Que me circunda a fronte cismadora!
São mortos para mim da noite os fachos,
Mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas,
E à vossa luz caminharei nos ermos!
Estrelas do sofrer, – gotas de mágoa,
Brando orvalho do céu! – Sede benditas!
Oh! filho de minh’alma! Última rosa
Que neste solo ingrato vicejava!
Minha esperança amargamente doce!
Quando as garças vierem do ocidente
Buscando um novo clima onde pousarem,
Não mais te embalarei sobre os joelhos,
Nem de teus olhos no cerúleo brilho
Acharei um consolo a meus tormentos!
Não mais invocarei a musa errante
Nesses retiros onde cada folha
Era um polido espelho de esmeralda
Que refletia os fugitivos quadros
Dos suspirados tempos que se foram!
Não mais perdido em vaporosas cismas
Escutarei ao pôr do sol, nas serras,
Vibrar a trompa sonorosa e leda
Do caçador que aos lares se recolhe!

Não mais! A areia tem corrido, e o livro
De minha infanda história está completo!
Pouco tenho de andar! Um passo ainda
E o fruto de meus dias, negro, podre,
Do galho eivado rolará por terra!
Ainda um treno, e o vendaval sem freio
Ao soprar quebrará a última fibra
Da lira infausta que nas mãos sustenho!
Tornei-me o eco das tristezas todas
Que entre os homens achei! O lago escuro
Onde ao clarão dos fogos da tormenta
Miram-se as larvas fúnebres do estrago!
Por toda a parte em que arrastei meu manto
Deixei um traço fundo de agonias!...

Oh! quantas horas não gastei, sentado
Sobre as costas bravias do Oceano,
Esperando que a vida se esvaísse
Como um floco de espuma, ou como o friso
Que deixa n’água o lenho do barqueiro!
Quantos momentos de loucura e febre
Não consumi perdido nos desertos,
Escutando os rumores das florestas,
E procurando nessas vozes torvas
Distinguir o meu cântico de morte!
Quantas noites de angústias e delírios
Não velei, entre as sombras espreitando
A passagem veloz do gênio horrendo
Que o mundo abate ao galopar infrene
Do selvagem corcel?... E tudo embalde!
A vida parecia ardente e douda
Agarrar-se a meu ser!... E tu tão jovem,
Tão puro ainda, – ainda n’alvorada,
Ave banhada em mares de esperança,
Rosa em botão, crisálida entre luzes,
Foste o escolhido na tremenda ceifa!
Ah! quando a vez primeira em meus cabelos
Senti bater teu hálito suave;
Quando em meus braços te cerrei, ouvindo
Pulsar-te o coração divino ainda;
Quando fitei teus olhos sossegados,
Abismos de inocência e de candura,
E baixo e a medo murmurei: meu filho!
Meu filho! frase imensa, inexplicável,
Grata como o chorar de Madalena
Aos pés do Redentor... ah! pelas fibras
Senti rugir o vento incendiado
Desse amor infinito que eterniza
O consórcio dos orbes que se enredam
Dos mistérios do ser na teia augusta
Que prende o céu à terra e a terra aos anjos!
Que se expande em torrentes inefáveis
Do seio imaculado de Maria!

Cegou-me tanta luz! Errei, fui homem!
E de meu erro a punição cruenta
Na mesma glória que elevou-me aos astros,
Chorando aos pés da cruz hoje padeço!

O som da orquestra, o retumbar dos bronzes,
A voz mentida de rafeiros bardos,
Torpe alegria que circunda os berços
Quando a opulência doura-lhes as bordas,
Não te saudaram ao sorrir primeiro,
Clícia mimosa rebentada à sombra!
Mas, ah! se pompas, esplendor faltaram-te,
Tiveste mais que os príncipes da terra!
Templos, altares de afeição sem termos!
Mundos de sentimento e de magia!
Cantos ditados pelo próprio Deus!
Oh! quantos reis que a humanidade aviltam,
E o gênio esmagam dos soberbos tronos,
Trocariam a púrpura romana
Por um verso, uma nota, um som apenas
Dos fecundos poemas que inspiraste!

Que belos sonhos! Que ilusões benditas!
Do cantor infeliz lançaste à vida,
Arco-íris de amor! Luz da aliança,
Calma e fulgente em meio da tormenta!
Do exílio escuro a cítara chorosa
Surgiu de novo e às virações errantes
Lançou dilúvios de harmonia! – O gozo
Ao pranto sucedeu. As férreas horas
Em desejos alados se mudaram.
Noites fugiam, madrugadas vinham,
Mas sepultado num prazer profundo
Não te deixava o berço descuidoso,
Nem de teu rosto meu olhar tirava,
Nem de outros sonhos que dos teus vivia!

Como eras lindo! Nas rosadas faces
Tinhas ainda o tépido vestígio
Dos beijos divinais, – nos olhos langues
Brilhava o brando raio que acendera
A bênção do Senhor quando o deixaste!
Sobre teu corpo a chusma dos anjinhos,
Filhos do éter e da luz, voavam,
Riam-se alegres, das caçoilas níveas
Celeste aroma te vertendo ao corpo!
E eu dizia comigo: – teu destino
Será mais belo que o cantar das fadas
Que dançam no arrebol, – mais triunfante
Que o sol nascente derribando ao nada
Muralhas de negrume!... Irás tão alto
Como o pássaro-rei do Novo Mundo!

Ai! doudo sonho!... Uma estação passou-se,
E tantas glórias, tão risonhos planos
Desfizeram-se em pó! O gênio escuro
Abrasou com seu facho ensanguentado
Meus soberbos castelos. A desgraça
Sentou-se em meu solar, e a soberana
Dos sinistros impérios de além-mundo
Com seu dedo real selou-te a fronte!
Inda te vejo pelas noites minhas,
Em meus dias sem luz vejo-te ainda,
Creio-te vivo, e morto te pranteio!...

Ouço o tanger monótono dos sinos,
E cada vibração contar parece
As ilusões que murcham-se contigo!
Escuto em meio de confusas vozes,
Cheias de frases pueris, estultas,
O linho mortuário que retalham
Para envolver teu corpo! Vejo esparsas
Saudades e perpétuas, – sinto o aroma
Do incenso das igrejas, – ouço os cantos
Dos ministros de Deus que me repetem
Que não és mais da terra!... E choro embalde.
Mas não! Tu dormes no infinito seio
Do Criador dos seres! Tu me falas
Na voz dos ventos, no chorar das aves,
Talvez das ondas no respiro flébil!
Tu me contemplas lá do céu, quem sabe,
No vulto solitário de uma estrela.
E são teus raios que meu estro aquecem!
Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho!
Brilha e fulgura no azulado manto,
Mas não te arrojes, lágrima da noite,
Nas ondas nebulosas do ocidente!
Brilha e fulgura! Quando a morte fria
Sobre mim sacudir o pó das asas,
Escada de Jacó serão teus raios
Por onde asinha subirá minh’alma.

Fonte (primeira, segunda e parte da última estrofe): Cereja, W. R. & Magalhães, T. C. 1995. Literatura brasileira. SP, Atual. Poema – com a dedicatória “À memória de meu Filho morto a 11 de dezembro de 1863” – publicado em livro em 1865.

22 junho 2015

Mecânica quântica

Robert T. Morrison & Robert N. Boyd

Em 1926, aparecia a teoria denominada mecânica quântica, desenvolvida na forma útil para a química por Erwin Schrödinger (da Universidade de Zurique). Schrödinger calculou expressões matemáticas para descrever o movimento de um electrão em função da respectiva energia. Estas expressões matemáticas denominam-se equações de onda, por se basearem no conceito de que os electrões apresentam propriedades, não só de partículas, como também de ondas.

Uma equação de onda tem uma série de soluções, chamadas funções de onda, cada uma delas correspondente a um nível de energia diferente para o electrão. O cálculo das funções de onda de qualquer sistema, exceptuados os mais simples, é tão demorado que presentemente – quando um dia se dispuser de computadores mais rápidos a situação será outra – apenas se podem obter soluções aproximadas. Mesmo assim, as indicações da mecânica quântica estão em tão boa concordância com os factos que esta teoria se considera hoje em dia a mais eficaz na interpretação das estruturas atômicas e moleculares.
[...]

Fonte: Morrison, R. T. & Boyd, R. N. 1981 [1973]. Química orgânica, 7ª edição. Lisboa, Calouste Gulbenkian.

20 junho 2015

O ouvido

Georg von Békésy

Mesmo em nossa era de avanços tecnológicos, os desempenhos até de nossas máquinas mais elaboradas são ainda obscurecidos pelos órgãos dos sentidos do corpo humano. Considere as tarefas do ouvido. Ele é tão sensível que quase pode ouvir a queda aleatória de moléculas de ar, batendo contra o tímpano. Ainda, a despeito de sua extraordinária sensibilidade, o ouvido pode resistir ao impacto de ondas sonoras de força suficiente para fazer o corpo vibrar. O ouvido está munido, além disso, de uma seletividade verdadeiramente impressionante. Numa sala cheia de pessoas falando, ele pode suprimir a maioria do ruído e concentrar-se em um indivíduo. O ouvido do regente de uma orquestra sinfônica pode isolar, do conjunto de sons, o do único instrumento que não se está desempenhando a contendo.
[...]

Fonte: Békésy, G. 1977 [1970]. O ouvido. In: Scientific American, Psicobiologia: as bases biológicas do comportamento. RJ, LTC. Artigo originalmente publicado em 1957.

18 junho 2015

Brilho do entardecer


John Atkinson Grimshaw (1836-1893). Evening glow. 1884.

Fonte da foto: Wikipedia.

16 junho 2015

Descobri que as coisas mudam e que tudo é pequeno...

F. Ponce de León

O chamado ‘Clube da Esquina’, movimento musical surgido em Belo Horizonte, na década de 1960, e que talvez represente o mais interessante e o mais agradável dos capítulos que formam a história da música popular brasileira, perdeu um dos seus integrantes: o compositor Fernando Brant.

De Caldas a Belo Horizonte

Quarto dos 11 filhos (um dos quais faleceu prematuramente) de Moacyr [‘Nonô’] Pimenta Brant (falecido em 2004), um juiz, e Yolanda Raimunda da Rocha Brant (falecida em 2011), uma dona de casa, Fernando Rocha Brant nasceu em Caldas, pequena cidade no sul de Minas Gerais, em 9/10/1946.

Acompanhando as remoções do pai, a família mudava de cidade com certa regularidade – seu irmão mais velho, por exemplo, o ex-deputado federal (1987-2007) e ex-ministro da Previdência e Assistência Social (2001-2002), Roberto Brant, nasceu em Belo Horizonte, mas alguns dos outros irmãos nasceram em outros municípios mineiros, como Pitangui, Uberaba e Diamantina. Em 1956, a família fixou residência em Belo Horizonte, onde ele então construiria a sua carreira profissional. Fez os estudos universitários na UFMG, obtendo um diploma de graduação em Direito, em 1970. Em 1972, casou com Leise Ferreira; o casal teve duas filhas, Ana Luiza e Isabel, além de um filho de criação, Diógenes.

Fernando Brant gostava muito de futebol – por influência paterna, tornou-se torcedor do América Futebol Clube (MG). Por sorte, porém, foi longe dos campos de futebol que ele se revelaria um craque.

Um craque das letras

Na história da música popular brasileira, raros compositores souberam introduzir, como ele, força poética em suas letras. Talvez porque a sua obra tenha sido erguida – notadamente nas décadas de 1960 e 1970 – a partir de alicerces fortemente literários. E o mais importante: ele aparentemente não se deixou contagiar pelo concretismo, movimento literário de vanguarda iniciado na década de 1950 e que exerceu uma enorme influência sobre poetas, artistas plásticos e músicos. Ocorre que, no âmbito da música popular, os compositores influenciados pelo concretismo tendiam (e, a rigor, ainda tendem) a ver a elaboração das letras como um mero jogo de palavras, com pouco ou nenhum interesse por temáticas que fujam do dia a dia das grandes cidades. (Compare, por exemplo, a letra de ‘Morro velho’ [1967], uma das poucas composições de Milton Nascimento, com a de ‘Alegria, alegria’ [1966], de Caetano Veloso.)

Brant era um compositor essencialmente lírico, ainda que às vezes fosse levado (ou se deixasse levar) pelas contingências. Seja como for, não é surpresa constatar que as suas composições de natureza ‘mais social’ tenham sido particularmente bem-sucedidas junto ao grande público. Entre os exemplos mais familiares, caberia citar (aqui, e ao longo deste artigo, as datas entre parêntesis se referem à gravação mais antiga que conheço) ‘Maria Maria’ (1978), ‘Credo’ (1978), ‘Unencounter (Canção da América)’ (1980), ‘Povo da raça Brasil’ (1980), ‘Notícias do Brasil (Os pássaros trazem)’ (1981), ‘Coração civil’ (1981), ‘Comunhão’ (1982), ‘Menestrel das Alagoas’ (1983) e ‘Canções e momentos’ (1987). Todavia, apesar do sucesso, estas são seriam necessariamente as suas obras mais líricas.

Algumas obras-primas

Compare os versos das canções acima com os de ‘Saudade dos aviões da Panair (Conversando no bar)’ (“[D]escobri que as coisas mudam e que tudo é pequeno...”) ou com os de ‘Promessas do Sol’ (“Você me quer forte/E eu não sou forte mais”), duas de suas primeiras composições (gravadas em 1974 e 1976, respectivamente) e, em minha opinião, duas de suas obras-primas.

Ou compare com os versos de ‘Travessia’ (1967) – sua primeira composição, escrita por insistência de Milton Nascimento, amigo e parceiro musical ao longo de toda a vida –, ‘Outubro’ (1967), ‘Sentinela’ (1968), ‘San Vicente’ (1972), ‘Milagre dos peixes’ (1973), ‘Ponta de areia’ (1974), ‘Boca a boca’ (1976) – talvez a menos conhecida de suas obras-primas –, ‘Caxangá’ (1977), ‘Maria solidária’ (1977), ‘Itamarandiba’ (1980), ‘Nos bailes da vida’ (1981), ‘Vendedor de sonhos’ (1987) e ‘Que virá dessa escuridão’ (1990).

Em meio a dezenas de composições, várias outras chamam a atenção, incluindo ‘Durango Kid’ (1970), ‘Paisagem da janela’ (1972), ‘Manuel, o audaz’ (1973), ‘Idolatrada’ (1975), ‘Céu de Brasília’ (1977), ‘Paixão e fé’ (1977), ‘O que foi feito deverá’ (1978), ‘Feira moderna’ (1978), ‘O medo de amar é o medo de ser livre’ (1978), ‘Roupa nova’ (1979), ‘Bola de meia, bola de gude’ (1980), ‘Vevecos, panelas e canelas’ (1981), ‘Fruta boa’ (1983), ‘Raça’ (1985), ‘Encontros e despedidas’ (1985), ‘Amormeuzinho’ (1986), ‘Planeta blue’ (1987), ‘Meu mestre coração’ (1987) e ‘Coisas da vida’ (1990) – sem contar ‘Para Lennon e McCartney’ (1970), cuja letra foi escrita a quatro mãos. A respeito desta última, eis uma lembrança de Márcio Borges (BORGES 1996, p. 239-40):

“[...] Lô [Borges] parou de tocar e nos propôs:
– Então, vocês dois não querem meter uma letra nisso não?
– Só se for agora – respondeu Fernando [Brant].
– Qual é o tema que você pensou pra ela? – perguntei [Márcio Borges].
– Na verdade, eu estava pensando na parceria do John e do Paul... nas parcerias, né. A gente aqui, também fazendo as nossas... e eles nunca vão saber. Mas pode ser outra coisa qualquer que você sentirem – Lô se apressou em dizer.
– Por mim esse tema está ótimo – disse Fernando.
– Eu faço a primeira parte e você faz a segunda – combinei com ele. [...] Na minha parte estava escrito:

Por que vocês não sabem
do lixo ocidental
Não precisam mais temer
Não precisam da timidez
todo dia é dia de viver
Por que você não verá
Meu lado ocidental
Não precisa medo não
Não precisa da solidão
Todo dia é dia de viver...

Na parte do Fernando estava escrito:

Eu sou da América do Sul
eu sei vocês não vão saber
Mas agora sou cowboy
sou do ouro, eu sou vocês
Sou do mundo, sou Minas Gerais.

[...] Quanto ao nome, ficou sendo o que Lô sugeriu: ‘Para Lennon e McCartney’.”

Coda

Além das parceiras tradicionais – e.g., com Milton Nascimento, os irmãos Borges (Márcio e Lô), Beto Guedes, Toninho Horta ou Tavinho Moura –, Brant também se envolveu com vários outros empreendimentos artísticos. Também trabalhou alguns anos como jornalista. Mais recentemente, como presidente da União Brasileira dos Compositores, foi um defensor dos direitos autorais de obras musicais, o que lhe valeu alguns dissabores e alguns desafetos, inclusive entre os seus pares.

Fernando Brant faleceu na última sexta-feira (12), aos 68 anos, em decorrência de complicações advindas de um transplante de fígado malsucedido. Além da viúva e dos três filhos, deixou dois netos. Deixou também uma enorme legião de amigos e admiradores.

De resto, não custa lembrar: letra de música não é sinônimo de poesia. Todavia, para quem vive chamando qualquer compositorzinho de ocasião de ‘poeta’, é imprescindível conhecer a obra desse gigante.

Referência citada

BORGES, M. 1996. Os sonhos não envelhecem: Histórias do Clube da Esquina. SP, Geração Editorial.

14 junho 2015

Itamarandiba

Fernando Brant

No meio do meu caminho
sempre haverá uma pedra
plantarei a minha casa
numa cidade de pedra

Itamarandiba, pedra corrida
pedra miúda rolando sem vida
como é miúda e quase sem brilho
a vida do povo que mora no vale

No caminho dessa cidade
passarás por Turmalina
sonharás com Pedra Azul
viverás em Diamantina

No caminho dessa cidade
as mulheres são morenas
os homens serão felizes
como se fossem meninos

Fonte: encarte que acompanha o LP Sentinela (1980), de Milton Nascimento.

13 junho 2015

Oito anos e oito meses no ar

F. Ponce de León

Na última sexta-feira, 12/6, o Poesia contra a guerra completou oito anos e oito meses no ar. Ao longo desse período, e até o fim do expediente de sexta-feira, o contador instalado no blogue registrou 271.533 visitas.

Desde o balanço anterior – Oito anos e sete meses no ar – foram aqui publicados pela primeira vez textos dos seguintes autores: Barão de Itararé, Bryan J. F. Manly, Dorion Sagan, J. Durral Mulholland, Maria Eugênia Carvalho do Amaral, Richard Keynes e Robert Herrick. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Jean-Pierre Franque e Marie-Guillemine Benoist.

09 junho 2015

To the virgins, to make much of time

Robert Herrick

Gather ye rosebuds while ye may,
Old time is still a-flying;
And this same flower that smiles to-day
To-morrow will be dying.

The glorious lamp of heaven, the sun,
The higher he’s a-getting,
The sooner will his race be run,
And nearer he’s to setting.

That age is best which is the first,
When youth and blood are warmer;
But being spent, the worse, and worst
Times still succeed the former.

Then be not coy, but use your time,
And while ye may go marry:
For having lost but once your prime
You may for ever tarry.

Fonte (primeira estrofe): Carpeaux, O. M. 2011. História da literatura ocidental, vol. 2. Brasília, Senado Federal. Poema publicado em livro em 1648.

07 junho 2015

A bordo do Beagle

Richard Keynes

21.
O Beagle ancorou no porto de Valdívia a 8 de janeiro; na manhã seguinte Charles subiu o rio até a calma cidadezinha, cujas casas eram inteiramente construídas com tábuas de alerce. Como Chiloé, a região cobria-se inteiramente de florestas, embora possuísse menos coníferas escuras e, portanto, tivesse a aparência mais clara. Uma espécie de bambu com cerca de seis metros de comprimento fornecia as longas e aguçadas chusas, ou lanças usadas pelos índios araucanos que, mais ao norte, lutavam contra o general Rosas na Argentina. Mas as 26 tribos que viviam em torno de Valdívia eram de reducidos e cristianos subordinados aos residentes espanhóis, e os caciques de várias delas recebiam pensões de 30 dólares ao ano para permanecer quietos. O frade do distrito disse que eles respeitavam a religião católica, mas não gostavam muito de ir à missa e resistiam à cerimônia de casamento – talvez porque a posição mais desejada fosse ser uma das 10 mulheres do cacique e, por turnos, morar com ele durante uma semana. As macieiras haviam se adaptado bem à região, produzindo cidra e um álcool mais forte; lamentavelmente a embriaguez era o principal pecado entre os índios.

A população da cidade era sobretudo espanhola, e na quinzena em que o Beagle passou ali, a alegria na embarcação cresceu muito. Um dia, o prefeito levou um barco cheio de senhoras para visitar o navio; por causa do mau tempo, elas foram obrigadas a passar a noite a bordo. Como compensação, organizou-se um baile, a que compareceu com muito gosto quase toda a tripulação. Charles observou que “todos declararam que as signoritas são encantadoras e, o que é mais surpreendente, elas não se esqueceram de como corar, arte atualmente esquecida em Chiloé”.
[...]

Fonte: Keynes, R. 2004. Aventuras e descobertas de Darwin a bordo do Beagle. RJ, Jorge Zahar.

05 junho 2015

Torre de menagem

Raul de Carvalho

Eu sempre pertenci às pessoas simples
Com elas reparti minha merenda meu azeite meu bolo
De pão-de-ló
Eu sempre dei às crianças gulosas e lambuzadas
O meu pires de arroz-doce
Na minha casa sempre houve
Um quinhão a mais de alegria
Ou quando não foi de alegria
Do sincero desejo que a houvesse para todos
Eu sempre dormi acompanhado
O resto é a história da minha solidão
De que não falo com vergonha
De que Deus não dê aos homens
Tudo quanto eu quis dar-lhes
Eu não sirvo para príncipe
Nem para servo nem para rei
Eu nasci para ser livre
Para ser livre e bom
Eu sempre soube quanto custa
O pão a quem trabalha
Eu nunca cobicei
O pão que não é meu
Eu acumulei tristeza
Como quem enche de vinho vermelho e maduro
Os tonéis dos anos
E quanto é dia de festa não sabe
Como contentar todas as sedes
Eu nunca perdi os olhos
Para a doçura que brota
De uns olhos de criança
E embora a infância tenha sido para mim
A aprendizagem dos enigmas
Não nunca troquei o pólen
Que não há nas plantas e nos seres
Pelo cinzento chão dos cárceres
Eu nunca tive amor senão ao vento ao Sol à resina dos pinheiros
Eu tive a solidão e o amor dos companheiros
De que nunca mais me esqueci
Eu só pertenço ao coração que flutua
Entre os lavradores e a seara
E mais perto da terra que do céu
Porque Deus assim o quer
Eu dormi sempre na eira
Entre o pó do trigo o silêncio das sementes o Sol do verão foi à noite o meu telhado
Eu amo tudo quanto vejo e não
Amo mais coisas porque não as vejo

Amo as estrelas porque elas alumiam
De inverno as casas pobres
E amo o Sol por ser ele o cobertor
Dos que nasceram cheios de frio
Eu amo tudo quanto ardente ou triste
Me dá ocasiões para amar
Sentei-me sempre ao lado
Dos seres que se assemelham
Ao chão da casa térrea
Onde eu nasci
Fui eu quem ajudou a enxugar
As primeiras lágrimas a minha Mãe
Por isso quando falo de amor sei o que digo
Por isso eu sempre tive o jeito de oferecer
Aos outros o meu modo de sofrer
Eu sempre tive o gosto de morrer
Como vivi: mais perto da planície
Com os olhos tão longe que os não vejo
Com a boca tão perto que a desejo
Com a alma tão minha que a ofereço
A qualquer pessoa que me agrade
Nasci com o coração
E os olhos da terra
A paisagem que me deram para ver
Ensinou-me a esperança

Numa haste que sobe
Dia a dia sobe
E cada vez mais sobe
Do meu para o teu coração
Por isso me sabe bem tudo o que digo
Porque não é a boca que o ensina
Por isso a poesia foi meu berço
Minha língua natal e passageira
Por isso eu sei que a nostalgia
De um bem que nunca foi
É a morada predilecta
Dos homens como eu
Tudo o que depois me aconteceu
Foi mandado por Deus e estava certo.

Na planície
À minha volta algumas oliveiras
O branco imaculado das paredes
O silêncio total e para sempre
Um horizonte que promete
Ser o Mar
Uma casa humedecida
Com a água e os lilases do quintal
A serenidade e o sorriso
Das pessoas mais velhas
Uma avó velhinha conversando
Com a morte e comigo todo o dia
Meu Pai que como eu fugiu do mundo
A brancura do meu leito
O lume aceso e à minha volta
Qualquer coisa que tornava
Meus olhos demasiado grandes
Qualquer coisa palpitante
E ameaçadora

Que foi meu inimigo e salvador
Que foi meu sangue e meu descanso
Que foi meu diário milagre
Que foi o meu gosto pela noite
E por tudo quanto a noite encerra
De sagrado e misterioso
De implacável e de belo
De confusamente melancólico
Para o coração do homem.

Deus quis que eu plantasse a minha voz
Na terra árida
Que os meus dedos abrissem
O caminho à água
Que a minha boca desfolhasse
Em toda a parte a música

Em cada voz o lábio e a cereja
Em cada aceno de outra mão
A minha mão
Ah ninguém pode
Roubar-me à livre
Modulação do Amor
Meu coração aprende
Desde manhã aprende
A pulsar continuamente
Pelos que se amam
Em toda a parte meu coração encontra
Motivos para ser forte e doce
Cada palavra ou cada face me devolve
O rosto inteiro da manhã

Com versos eu devolvo ao Universo
A confiança que Deus depositou em mim.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema – com a dedicatória ‘À Matilde Rosa Araújo e a Fernando Namora’ – publicado em livro em 1955.

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