05 junho 2015

Torre de menagem

Raul de Carvalho

Eu sempre pertenci às pessoas simples
Com elas reparti minha merenda meu azeite meu bolo
De pão-de-ló
Eu sempre dei às crianças gulosas e lambuzadas
O meu pires de arroz-doce
Na minha casa sempre houve
Um quinhão a mais de alegria
Ou quando não foi de alegria
Do sincero desejo que a houvesse para todos
Eu sempre dormi acompanhado
O resto é a história da minha solidão
De que não falo com vergonha
De que Deus não dê aos homens
Tudo quanto eu quis dar-lhes
Eu não sirvo para príncipe
Nem para servo nem para rei
Eu nasci para ser livre
Para ser livre e bom
Eu sempre soube quanto custa
O pão a quem trabalha
Eu nunca cobicei
O pão que não é meu
Eu acumulei tristeza
Como quem enche de vinho vermelho e maduro
Os tonéis dos anos
E quanto é dia de festa não sabe
Como contentar todas as sedes
Eu nunca perdi os olhos
Para a doçura que brota
De uns olhos de criança
E embora a infância tenha sido para mim
A aprendizagem dos enigmas
Não nunca troquei o pólen
Que não há nas plantas e nos seres
Pelo cinzento chão dos cárceres
Eu nunca tive amor senão ao vento ao Sol à resina dos pinheiros
Eu tive a solidão e o amor dos companheiros
De que nunca mais me esqueci
Eu só pertenço ao coração que flutua
Entre os lavradores e a seara
E mais perto da terra que do céu
Porque Deus assim o quer
Eu dormi sempre na eira
Entre o pó do trigo o silêncio das sementes o Sol do verão foi à noite o meu telhado
Eu amo tudo quanto vejo e não
Amo mais coisas porque não as vejo

Amo as estrelas porque elas alumiam
De inverno as casas pobres
E amo o Sol por ser ele o cobertor
Dos que nasceram cheios de frio
Eu amo tudo quanto ardente ou triste
Me dá ocasiões para amar
Sentei-me sempre ao lado
Dos seres que se assemelham
Ao chão da casa térrea
Onde eu nasci
Fui eu quem ajudou a enxugar
As primeiras lágrimas a minha Mãe
Por isso quando falo de amor sei o que digo
Por isso eu sempre tive o jeito de oferecer
Aos outros o meu modo de sofrer
Eu sempre tive o gosto de morrer
Como vivi: mais perto da planície
Com os olhos tão longe que os não vejo
Com a boca tão perto que a desejo
Com a alma tão minha que a ofereço
A qualquer pessoa que me agrade
Nasci com o coração
E os olhos da terra
A paisagem que me deram para ver
Ensinou-me a esperança

Numa haste que sobe
Dia a dia sobe
E cada vez mais sobe
Do meu para o teu coração
Por isso me sabe bem tudo o que digo
Porque não é a boca que o ensina
Por isso a poesia foi meu berço
Minha língua natal e passageira
Por isso eu sei que a nostalgia
De um bem que nunca foi
É a morada predilecta
Dos homens como eu
Tudo o que depois me aconteceu
Foi mandado por Deus e estava certo.

Na planície
À minha volta algumas oliveiras
O branco imaculado das paredes
O silêncio total e para sempre
Um horizonte que promete
Ser o Mar
Uma casa humedecida
Com a água e os lilases do quintal
A serenidade e o sorriso
Das pessoas mais velhas
Uma avó velhinha conversando
Com a morte e comigo todo o dia
Meu Pai que como eu fugiu do mundo
A brancura do meu leito
O lume aceso e à minha volta
Qualquer coisa que tornava
Meus olhos demasiado grandes
Qualquer coisa palpitante
E ameaçadora

Que foi meu inimigo e salvador
Que foi meu sangue e meu descanso
Que foi meu diário milagre
Que foi o meu gosto pela noite
E por tudo quanto a noite encerra
De sagrado e misterioso
De implacável e de belo
De confusamente melancólico
Para o coração do homem.

Deus quis que eu plantasse a minha voz
Na terra árida
Que os meus dedos abrissem
O caminho à água
Que a minha boca desfolhasse
Em toda a parte a música

Em cada voz o lábio e a cereja
Em cada aceno de outra mão
A minha mão
Ah ninguém pode
Roubar-me à livre
Modulação do Amor
Meu coração aprende
Desde manhã aprende
A pulsar continuamente
Pelos que se amam
Em toda a parte meu coração encontra
Motivos para ser forte e doce
Cada palavra ou cada face me devolve
O rosto inteiro da manhã

Com versos eu devolvo ao Universo
A confiança que Deus depositou em mim.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema – com a dedicatória ‘À Matilde Rosa Araújo e a Fernando Namora’ – publicado em livro em 1955.

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