22 agosto 2015

Entre sombras

Antero de Quental

Vem às vezes sentar-se ao pé de mim
– A noite desce, desfolhando as rosas –
Vem ter comigo, às horas duvidosas,
Uma visão, com asas de cetim...

Pousa de leve a delicada mão
– Recende aroma a noite sossegada –
Pousa a mão compassiva e perfumada
Sobre o meu dolorido coração...

E diz-me essa visão compadecida
– Há suspiros no espaço vaporoso –
Diz-me: Por que é que choras silencioso?
Por que é tão erma e triste a tua vida?

Vem comigo! Embalado nos meus braços
– Na noite funda há um silencio santo –
N’um sonho feito só de luz e encanto
Transporás a dormir esses espaços...

Porque eu habito a região distante
– A noite exala uma doçura infinda –
Onde ainda se crê e se ama ainda,
Onde uma aurora igual brilha constante...

Habito ali, e tu virás comigo,
– Palpita a noite n’um clarão que ofusca –
Porque eu venho de longe, em tua busca,
Trazer-te paz e alívio, pobre amigo...

Assim me fala essa visão nocturna
– No vago espaço há vozes dolorosas –
São as suas palavras carinhosas
Água correndo em cristalina urna...

Mas eu escuto-a imóvel, sonolento
– A noite verte um desconsolo imenso –
Sinto nos membros como um chumbo denso,
E mudo e tenebroso o pensamento...

Fito-a, n’um pasmo doloroso absorto
– A noite é erma como campa enorme –
Fito-a com olhos turvos de quem dorme
E respondo: Bem sabes que estou morto!

Fonte: Quental, A. 2004. Melhores poemas. SP, Global. Poema publicado em livro em 1886.

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