17 junho 2017

Visita ao túmulo materno

Augusto Frederico Schmidt

Este homem parecendo distraído
Que está ao pé de teu leito de pedra,
Este ser usado, batido e contraditório,
É a mesma criatura que trouxeste a este mundo
E foi ferida e feriu e foi injustiçada
E praticou injustiças nesta inglória existência.
Este homem inconsciente e incerto,
Discutido e incompreendido,
Este homem no seu outono,
Cujos olhos perderam o brilho e o calor
E se tornaram apagados e tristes,
Este desconhecido que aqui está
E que, por um breve momento, procurou um abrigo junto à tua ausência,
E que, para disfarçar o seu medo
Procura apoiar-se nos seus pobres e terrestres interesses,
Este homem inqualificável, insaciável e insatisfeito
É aquele mesmo filho teu, aquele tonto filho a quem embalastes quando saiu da materna sepultura,
É o mesmo ser a quem deixaste na adolescência
Só o poeta – o que vale dizer duas vezes só.
É o teu filho, o teu filho
A quem não reconhecerias, tão mudado ficou
Desde que o viste pela última vez;
É a tua caixa de ressonância, Mãe, que aqui está,
Convencional e estúpido, com o ar de quem cumpre um dever.
A fronte que se curva, num gesto comum,
Diante de tua lousa, é a mesma fronte
Em que pousaram as tuas inquietas mãos
Para medir as febres da infância.
É o teu filho que desejaria que o embalasses nos teus braços de morta,
Mas não ousa pedir-te, porque é um homem,
Um homem acabado, mas um homem assim mesmo.

Fonte: Horta, A. B. 2007. Criadores de mantras. Brasília, Thesaurus. Poema publicado em livro em 1964.

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